Andamos dentro da noite quente, da noite verde, ouvindo os barulhos do escuro verde e quente. A Sônia queria fotografar a lua refletida nas águas do rio Tietê, e lá fomos nós através da longa ponte. Temerosos, sozinhos na ponte solitária. Como dois bichos, disse a Sônia. Como deuses, digo eu, que sou mais pretensioso.
É normal dos bichos a solidão escura. Interessante, indescritível: ouvir os barulhos da noite. As vozes, a estranha linguagem da noite. Porque a noite falava. Distinguíamos as cigarras, os grilos, mas ouvíamos mil outros sons – articulados, essa estranha linguagem. Não exagero ao dizer “mil outros sons”: uma infinidade de sons nos acompanhava.
Pássaros noturnos, que nos estranhavam. Vimos claramente visto, apesar do escuro, dois quero-queros nos enfrentarem: estávamos em seu terreno. Mas muitos outros pássaros não vimos: sabemos que fomos vistos e estranhados. Falamos dessa estranheza da noite: nós é que éramos estranhos. Nós, bichos da cidade, é que não estávamos no nosso elemento.
O gerente do hotel à beira rio nos animara: poderíamos caminhar à vontade, a ponte é monitorada, não há perigo. Alguma cobra poderia cruzar-nos a frente, mas não havia perigo. Não houve perigo. Houve maravilhamento.
Não vimos a lua refletida nas águas negras, lá embaixo, invisíveis. Vimos o brilho da lua multiplicado, num rodamoinho a um canto da ponte, multifacetada, como estrelas líquidas dançando nas águas inquietas, violentas e doces.
As águas iam e vinham, quebravam-se nas pedras, com estrondo. Longínquas, quase inaudíveis. Quase: nós as ouvíamos mais com a imaginação.
A Sônia fotografou a lua entre as árvores. Como a lua não veio mirar-se no espelho das águas, nós a contemplamos no espelho do ar da noite. Entre as árvores. Foi quando soubemos que a noite não é negra, mas verde. As fotos, batidas no escuro, deixam-nos ver o verde, nítido, forte, vívido. Como o verde é verde! Mesmo à noite. Porque a noite não é escura, mas verde.
O vento batia-nos nas faces. Havia apenas uma leve brisa, mas eu digo: o vento, o vento escuro batia-nos nas faces, nos olhos, no corpo todo. Sacudia-nos o corpo, talvez a alma.
O corpo não se mexia com essa brisa suave, esse ar quase parado. Mas a alma! A alma entrava em êxtase, eu diria, se o êxtase não fosse para os santos, em situações excepcionais. Não somos santos, mas vivíamos uma situação excepcional. A alma projetava-se para fora do corpo, com esse ar parado.
Filmei a Sônia caminhando no escuro: não se vê nem a sua sombra escura, a imagem de um fantasma caminhando. Mas ela está ali. Assim é a existência da alma: ela está ali.
No meio da ponte, entre o céu e a água, nós estamos perto de Deus. Por isso eu disse que éramos como deuses. Um fio muito tênue ligava-nos a Deus.
A alma estava ali. Levava-nos, num lance mágico, para perto de Deus.
Um fio muito tênue e firme, firmíssimo, ligava-nos a Deus.
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