quarta-feira, 24 de abril de 2019

Meu tempo

                                                                                                                              Kandinski



MEU TEMPO


O soldado me apontou o fuzil e atirou.
Os fuzis existem para atirar,
os soldados existem para matar.
Vivemos num campo cercado de arame farpado,
vivemos num mundo em guerra sem trégua,
estamos irrevogavelmente condenados ao extermínio.
Restam de nós estranhas palavras nas paredes,
não restarão as casas mas apenas as paredes
e aquelas palavras que serão os nossos nomes
impronunciáveis como fendas.
Fomos condenados ao exílio em nossa própria terra.
Crescem ervas daninhas entre as ruínas de nossas casas.
Deus abaixe a sua mão cruel, Deus tenha piedade.
Vivemos em um mundo em extinção,
o sal salga o chão que pisamos e não conserva vida nenhuma.








 

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Tributo a Evaldo Rosa dos Santos





Foram oitenta tiros de fuzil.
O metal caiu com estrépito.
A fumaça se elevou no ar da tarde.
O sangue borbulhando com a flor no alto.
Uma flor de sangue nas costas.
Os ovos da morte borbulhando no sangue.
Ouve a música da flauta que se quebra.
Ouve o touro da morte, como muge.
Ouve o tigre da morte, como ruge.
Ouve o rinoceronte da morte, que estúpido.
Ouve a jaula da morte, nenhuma lucidez.
De tudo ficou apenas um buraco negro.
Nenhuma pomba branca voa mais.
O músico é um pássaro com a garganta cortada e canta.
O seu canto corta a pele do dia como o diamante. 




domingo, 14 de abril de 2019

Este país não é um cachimbo

                                                                                                                                                                         Magritte



Este país não é um cachimbo
                                  

Virou o dia do avesso e chupou até o pau.
Vestiu a noite física e saiu por aí. Ou por lá.
A poesia é uma loucura. O real é chato paca.
A pedra vira água. E se escoa pelos dedos.
A cidade assombra. Como um rinoceronte.
Fotografaram o buraco negro. Era vermelho.
Perdi a goiaba, a manga e a esperança. 
E se o bicho da goiaba me comer ontem?
Chupei uma laranja e me engasguei. Orra meu.
Olha o sorriso do filhote de cruz-credo.
Estão mangando de mim, este é um país triste.
Enche a vida até espumar. Bebe a espuma e cospe.
Tinha a magia na fronte e nenhuma poesia.
Atira e depois pergunta. Aliás, atira e dá risada.
As palavras caíram no abismo desesperadas.
A pátria tem a língua e os olhos cheios de lágrimas.
Quem descasca uma cebola tem que chorar.
Quem descasca um abacaxi também descasca um pepino?
A água não volta atrás, vira lama e corricho.
Aliás, corricho é um porco pequeno e não vê o céu.
O último a sair não apague a luz no fim do túnel.





  

terça-feira, 9 de abril de 2019

O meu medo

                                                                                                          Van Gogh



         O meu medo


O meu medo não tem a voz de um morto,
não tem a minha própria voz.
O meu medo é uma folha em branco
como uma lápide fria.
O meu medo não é o quarto escuro,
não é a igreja vazia na noite.
O meu medo é a paisagem nua,
com o abismo da rosa sobre a pedra.
O meu medo não tem o peso de um morto,
os mortos são leves como plumas brancas.
O meu medo não é a ferida nos lábios,
não são os olhos vazados.
O meu medo é Deus não me encontrar,
o meu medo é a minha própria ausência.