sábado, 30 de abril de 2011

O MARTELO




O MARTELO

O martelo da araponga trinca a tarde.
O arado rasga a terra e a carne,
dói na memória.
As sementes apodrecem e sonham.
As espigas estralam na roça,
nos olhos, no coração.

As rolinhas alvoroçadas
caem na palhada.
Em casa, o jardim paira no ar
com o perfume das rosas.
Um girassol caduca na estrada.
O monjolo ecoa, ecoa.

O afogado engorda na lagoa,
azul, quase negro.
As moscas em festa, desorientadas.
A vida, tanta vida à beira da morte.
A relva cresce, com os cabelos, as unhas.

Uma lágrima, furtiva,
no olho do cachorro.
Uma lagarta na amoreira.
A brisa ao luar balançava as nuvens e os grilos.
As estrelas pingavam.
O orvalho do silêncio murmurava o meu nome.



quinta-feira, 28 de abril de 2011

O MAR E A GAIVOTA





O MAR E A GAIVOTA

Além da pedra, o mar.
Os meus pés afundavam na areia, eu ofegava.
O peixe no fundo do barco
saltava e ofegava, com falta de ar.

Numa árvore, uma bicicleta pendurada
e os pássaros brincando nos pedais.
Uma cabra pastava nas pedras,
um cachorro farejava a areia.
A gaivota beijou a água junto à rede dos pescadores.
O sol glorioso cintilava no ar.

Foi nesse dia que criei o mito da gaivota morta
sobre uma pedra, o sangue escorrendo com as espumas?
O conhecimento da morte vem aos poucos, no cotidiano
ou nos dias especiais, de dor ou júbilo extremo.
Tudo que perdemos carregamos conosco.

O mar, sempre o mar.
No princípio e no fim, o mar.
O voo branco das gaivotas, o sal,
a areia, a dança das vagas.
O infinito é aqui.

A minha língua modula as mesmas palavras.
O cavalo galopa no eterno,
com a lua e as estrelas.
Eu galopo com o cavalo eterno.



terça-feira, 26 de abril de 2011

Os elefantes


  

   OS ELEFANTES

Os elefantes retiram-se para morrer.
Limpam os cascos, o couro duro, casca
a envolver uma alma, ou sua ausência.
Ouçam as ondas, ouçam os ventos, e a distância.

Os elefantes aderem à terra, à pedra, como caramujos,
como lagartos no deserto, vestidos de solidão.
Vivem à superfície das coisas, da inércia.
As cabeças pendem aflitas para o chão fundo.

Os elefantes medem as passadas, a sombra, a dor.
Marcam a terra com o rastro, como uma efígie.
Desenham a curva insana do universo, esquecidos
de Deus, eles que são a vulva da memória.

Os elefantes caminham para a terra apodrecida,
a terra da ausência. Carregam a tristeza na tromba
pensa. O sal do tempo é um convite ao abismo.
A febre iluminará o último vestígio de êxtase.

Os elefantes fecham os olhos à espera do esquecimento.
É o tempo das moscas, do zinabre úmido, da cal.
É tempo de cantar uma ode à morte, já desejada.
É tempo de debulhar as favas da morte para o eterno.


 

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A ORDEM NATURAL DAS COISAS




A ORDEM NATURAL DAS COISAS

A abelha se inclina sobre o ouro da rosa,
Os peixes saltam alegres no tanque do pomar,
As crianças brincam à sombra da figueira,
O trator sobe o barranco e resfolega como uma baleia.

O girassol pende a enorme corola
Para o pôr-do-sol se renovando no horizonte,
Os pássaros se recolhem entre as folhas escuras
Saudando o fim do dia com uma última algazarra.

Os primeiros vaga-lumes acendem as estrelas.
Um sossego sem surpresas desce sobre as coisas
Com um bocejo de cansaço sonolento.
A coruja é um ponto de sombra no escuro.

A vida prossegue com a quietude de tudo:
A terra arada à espera da semente,
As plantas que nascem e morrem como os homens
E os animais recolhidos ao seu domicílio comum.

----------

O título deste poema é tomado de empréstimo a um romance de António Lobo Antunes.



sexta-feira, 22 de abril de 2011

SEXTA-FEIRA SANTA




PRECE

Senhor, dai-me paciência para esperar.
Senhor, dai-me o silêncio das esferas
e a música, a inaudível música dos anjos.
Dai-me a palavra para cantar a vossa glória.
Dai-me a luz para ver a vossa face
e espantar-me
e cair por terra.
Dai-me a graça de ver,
refletido no lago do tempo,
o eterno.


A SOMBRA NA MONTANHA

Uma sombra cai
sobre a montanha.

É sol onde estou.
Ainda é sol.

Não desça a sombra, Senhor,
antes que eu suba a montanha.


          SEMENTES

O meu pai passeava entre os túmulos
contando a história dos seus mortos,

sementes plantadas na terra
para florescer no devido tempo.

Os mortos vieram do passado longínquo
e se plantaram para não mais morrer.

Quando chegar a minha hora de ser semente
sei que a terra inteira não me bastará

para os frutos da minha ressurreição.



quarta-feira, 20 de abril de 2011

O elefante




O ELEFANTE

Também chora em mim um elefante.
O meu peito ofega com o peso do mundo.
A porteira range, a cadeira range, e a ausência
continua a ranger noite a dentro, até hoje.

Eu olhava o relógio parado na parede
adivinhando a queda do tempo, como óleo quente.
Os lampiões lançavam sombras nas telhas
da cozinha, entre os morcegos e o picumã.

Que podem as palavras contra o esquecimento?
O queijo da infância debruça-se sobre a mesa,
As formigas fazem o seu trabalho, a aranha arma
a teia, solerte, com paciência infinita.

Somente o homem é um bicho sem paciência.
Os trabalhos e os dias, o rangido da rede
no mormaço da tarde, contra o ofício da morte.
Era tranquila a vida, quase um êxtase,

mas aprendíamos a morte. Como um elefante,
aprendíamos a morte. Sem lápides,
aprendíamos a morte no horizonte em brasa.
O olvido trincha a carne sob a campa do tempo.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

AUTORRETRATO




AUTORRETRATO

Fui um cavalo com o sol no lombo
Fui um córrego no fundo do barranco
Fui o vento zunindo no telhado
Fui a casa velha caindo aos pedaços.

Havia um boi e um cachorro no pasto
Havia ossos embaixo do assoalho
Havia um poço embaixo da casa
Havia um espelho sem imagem.

Eu era o menino no arame farpado
Eram meus os ossos cruzados
Eu estava preso no poço e gania
Eu era o homem sem alma no espelho.

O tempo passou a galope na ampulheta
Foi formando no ar quem eu sou hoje
A semente morre hoje para nascer amanhã
As águas são outras debaixo da ponte.




sexta-feira, 15 de abril de 2011

Yuri Gagárin





 
YURI GAGÁRIN

– A terra é azul! A terra é azul!
gritava Yuri Gagárin no espaço sideral.

Não me lembro mais o que escrevi
nas linhas tortas do meu poema adolescente
há quase cinquenta anos.

Mas me lembro de que Yuri Gagárin gritava:
– A terra é azul! A terra é azul!

E não era preciso mais nada.
Yuri Gagárin descobriu a poesia.