sábado, 28 de maio de 2022

Réquiem por Genivaldo

 


Réquiem por Genivaldo

 

 

Genivaldo morreu asfixiado na câmara de gás.

Uma pergunta que não quer calar: Por quê?

Seguida de outras perguntas sem resposta:

Por que um homem morre?

Por que os homens matam?

Por que os homens se tornaram tão desumanos?

Nós vamos aceitar esse assassinato tão frio?

Toda a sociedade vestiu essa desumanidade?

Como poderemos viver depois disso?

Não podemos chegar àquele ponto

em que Deus se arrepende: tem medo da raça humana.

 *

Os policiais rodoviários federais responsáveis pela morte cruel de Genivaldo de Jesus Santos são Clenilson José dos Santos, Paulo Rodolpho Lima Nascimento, Adeilton dos Santos Nunes, William de Barros Noia e Kleber Nascimento Freitas. É preciso dar nome aos bois.

Genivaldo foi parado porque estava andando de moto sem capacete. Por esse “monstruoso” crime foi enfiado no porta-malas do carro da polícia e sufocado com gás de pimenta. Quiseram dar-lhe uma lição? Quiseram acalmá-lo? O que fizeram foi um crime hediondo que envergonha a humanidade.

Os policiais agrediram Genivaldo por 30 minutos, relatam moradores. A abordagem foi em Umbaúba, SE, e terminou com a morte da vítima por asfixia. Ele se debateu, enquanto a cena foi gravada por várias testemunhas, inclusive familiares.

Não há como dourar a pílula.

Foi um comportamento sujo demais.

O presidente Jair Bolsonaro disse que não está informado para comentar o que aconteceu. Só ele não sabe o que aconteceu.

Todos os superiores dos soldados da PRF envolvidos deveriam ser demitidos, deveriam também ser responsabilizados criminalmente.

Direitos Humanos foi tirada da formação da PRF. É possível entender?

Genivaldo foi detido porque estava sem capacete. O presidente da República costuma fazer suas “motociatas” (que nome horrível) sem capacete.

Genivaldo era uma pessoa com deficiência mental. Mostrou aos policiais a caixinha de remédio e a receita que costumava carregar.

Genivaldo cometeu três crimes: não era presidente, era negro, era deficiente. Horror.

O sobrinho de Genivaldo Santos denuncia que os policiais trataram com ironia o seu pedido para que o tio não sufocasse dentro do carro da PRF.  

Genivaldo não tinha condenações, nem respondia a processos na Justiça. Ele se aposentou cedo por conta do problema de saúde, a esquizofrenia, com que convivia havia duas décadas. Deixa esposa e um filho de sete anos.  

Em nota, a PRF de Sergipe diz que Genivaldo "resistiu ativamente a uma abordagem de uma equipe da PRF" — o que é desmentido pelas imagens, que o mostram imobilizado pelos policiais.

A corporação afirmou que, em razão de sua "agressividade", foram empregadas "técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à delegacia da polícia civil da cidade.”

O IML afirma que Genivaldo morreu asfixiado por conta do gás, chamado de “instrumento de menor potencial ofensivo”.

Um laudo do Instituto Médico Legal confirmou que a morte de Genivaldo, um homem negro com transtornos psiquiátricos, "morreu de asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda".

Depois de parar a moto, Genivaldo teve mãos e pés amarrados. Mesmo sem reagir à abordagem, ele foi agredido pelos agentes. Perguntou o que tinha feito para os policiais o agredirem de tal forma.

‘Porque eles estão fazendo isso comigo se eu não fiz nada pra vocês?’

As imagens da fumaça saindo da traseira do carro levaram a comparações entre a política da polícia e o nazismo.

“Não é que parece com o nazismo, em termos de prática de assassinato, é nazismo. Se usou exatamente a mesma forma de matar que o nazismo tinha”, afirmou Michel Gherman, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, assessor do Instituto Brasil-Israel e professor de sociologia.

A moral está asfixiada com este caso bárbaro. Eu tinha escrito apenas um poema, ruim, dominado pela dor. Por mais que fale não diria da minha indignação, da minha tristeza sem tamanho.

Eu tenho que me calar.

 

 

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Carolina Maria de Jesus



Carolina Maria de Jesus

 

“Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, foi publicado em 1960. Eu morava em Igaraçu do Tietê, mas em 1959 tinha ido para o Seminário da Consolata, em Jaú. Lá por 1961 ou 1962 (não mais, depois a minha família já tinha retornado para Dois Córregos, nossa terra desde sempre), eu tinha treze ou quatorze anos de idade, em umas férias encontrei um exemplar de “Quarto de despejo” em casa. Minha mãe gostava de ler, apesar de ter morado boa parte de sua vida no Matão, região rural de Dois Córregos, e ter estudado muito pouco. Minha tia Cila, sua irmã, deve ter lhe trazido o “Quarto de despejo” de São Paulo.

O livro já estava judiado, caindo a capa, cheio de dobras, folhas se soltando, desgaste, marcas de sujeira. Pode não ter agradado muito, mas foi muito bem aproveitado. Eu não era um bom leitor ainda, tinha sido alfabetizado em escolinha de sítio, com muita dificuldade de aprendizagem, mas o livro já me encantava. Assim, eu penetrei naquele “Quarto de despejo” cheio de expectativas. O que seria esse livro, quem seria essa autora, por que esse título? Esse livro me chamou tanto a atenção que não esqueci até hoje a sensação que me causou. É um livro para não ser esquecido.

Aos poucos fui descobrindo que havia ali um novo mundo. Havia uma autora negra, pobre, favelada, que denunciava a situação sub-humana em que vivia. Como a sociedade permitia que existisse um ambiente como esse? Como uma escritora podia ser degradada a tal ponto? Vi que havia erros gramaticais naquelas páginas, mas havia sobretudo denúncia de uma situação degradante ao extremo de um ser humano. O governo era cego? Era conivente com a miséria absoluta de homens, mulheres, crianças e velhos? E uma dessas personagens, uma mulher quase analfabeta deixava explodir a sua revolta contra essa situação aviltante.

O mais bonito de tudo isso foi que esse livro foi uma das portas de entrada da literatura para mim. Por essa época eu li “A aldeia sagrada”, de Francisco Marins (que morava aqui pertinho de Bauru, em Botucatu, e morreu há alguns anos, em 2016, com seus 94 anos de idade). Esse livro me apresentou o ambiente sofrido, degradante também, de Canudos. Quando li “Os sertões”, de Euclides da Cunha, li apreciando, me enlevando com a beleza da linguagem, de que todos reclamam ser tão difícil. A história, a miséria do ambiente, isso eu já conhecia.

Agora eu aprendia, com o “Quarto de despejo”, que a literatura não precisa ficar nas alturas, com uma linguagem inacessível ao comum dos mortais. A linguagem, não apenas do povo, mas do povo mais miserável, também é própria para a literatura. Carolina Maria de Jesus inovou mais do que poderia imaginar, mostrou que a miséria e a revolta que ela carrega também são matéria de literatura.