quarta-feira, 25 de maio de 2011

A queda de uma estrela


Eu vi uma estrela cair,
Quase ouvi o seu tchibum no charco.
O céu estava coalhado de estrelas,
Mas só uma, frágil, caiu.

Uma estrela, num átimo, se apagou.
As rãs coaxaram mais alto,
Depois, sem explicação, se calaram.
Um grilo teimoso não parava de cantar.

Uma coruja lançou seu grito de caça,
Fuzilando com os olhos um sapo enorme.
A lua clareava as árvores,
Desenhava figuras estranhas no chão.

Eu pensei na estrela como um peixe
Verde-prateado brilhando na água.
O mundo, sem que eu percebesse,
Ficou menor com a queda dessa estrela.


quinta-feira, 19 de maio de 2011

D’APRÈS MANUEL BANDEIRA





D’APRÈS MANUEL BANDEIRA


Minha grande ternura pelos passarinhos que eu matei
com o meu estilingue e a minha sanha assassina de menino.
Pelas lagartixas na parede, translúcidas e frias,
Pelas pequenas moscas que serviriam de alimento
às aranhas, aos sapos gorduchos e às lagartixas.

Minha grande ternura pelas mulheres feias,
mendigando algum afeto, alguma humanidade;
por uma prostituta desdentada que um dia me convidou
e eu não fui, mas saí daquela rua doendo;
pelas crianças abandonadas no lixo,
pelos pobres que se alimentam de lixo.

Minha grande ternura pelos poemas que rasguei
de tão desajeitados em seu jeito de sofer
(porque um poema é feito para se sofrer).

Minha grande ternura pelos pobres desamados
que permanceceram crianças à porta da velhice
(prontas para entar no paraíso – que é dos pequeninos).

Minha grande ternura pelo menino que eu fui
perdido no mundo, como agora ainda estou.



quarta-feira, 18 de maio de 2011

D'APRÈS D. H. LAWRENCE



Deus leva mais cedo os melhores de nós.
Ficamos – os piores, os sem virtude.
Vivemos – os que não têm nenhuma razão para viver.
Nem Deus nos quer.
O que ficamos a fazer aqui na terra?
Criamos ferrugem, criamos pátina
como engrenagens abandonadas?
Nós nos recusamos a viver
e Deus não nos leva.
Deus é a vida, em si e para si,
Por que nos quereria, nós que somos contra a vida?
Nem o diabo nos quer.
Nós já vivemos no inferno.



segunda-feira, 16 de maio de 2011

D’APRÈS ALBERTO CAEIRO




O Tietê é mais belo que os dois córregos que correm pela minha aldeia,
Mas o Tietê não é mais belo que os dois córregos que correm pela minha aldeia
Porque o Tietê não é os dois córregos que correm pela minha aldeia.

O Tietê é um rio enorme
Perto dos meus pequeninos dois córregos.
Foi a rota dos bandeirantes, dos aventureiros, dos colonizadores,
Nasce na beira do mar e atravessa todo o Estado de São Paulo.
Toda a gente sabe disso.
Mas poucos sabem quais são os dois córregos da minha aldeia,
Que um se chama Fundo e o outro Lajeado
E que se encontram formando o rio do Peixe,
Que vai se tornar muito mais adiante o rio Jaú,
Mas isso é outra história.
O que importa é que na confluência do Fundo e do Lajeado
Nasceu a minha aldeia
E por isso o Fundo e o Lajeado são muito maiores
Para mim e para a minha aldeia.

Pouco importa que pouca gente conheça os dois córregos da minha aldeia,
Os dois córregos que lhe deram o ser e o nome.
O Tietê também passa pela minha aldeia,
Mas lá longe, descendo tanto a serra que nem é mais a minha aldeia.
O Tietê é a História,
Todo mundo conhece, todo mundo ama.
Todo mundo imagina mil histórias heróicas ao pé do rio Tietê.
Ao pé dos meus dois córregos não se imagina nada,
Apenas deixa-se existir simplesmente
Como as coisas existem,
Como as águas que passam e se renovam sem se dar por isso.

Gregório Vaz - Metamorfoses de Ofídio



sábado, 14 de maio de 2011

D’APRÈS CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



Chegou um tempo em que não digo mais: meu Deus.
Deus se tornou uma palavra inútil.
O amor se tornou uma palavra inútil.
E já não sei chorar.
As minhas mãos tecem os trabalhos e os dias.
O meu coração é de gelo.

Não quero saber mais das mulheres ou das crianças.
Estou sozinho no escuro
onde a minha solidão é maior
e posso vazar os meus olhos em segredo.

A velhice pesa como chumbo.
Os meus ombros não aguentam o peso do mundo.
As guerras e a fome provam apenas
que o homem é o mesmo animal.
Os ratos roem  a roupa do rei,
os ratos já roeram o edifício.
O suidídio não é mais questão capital da filosofia.
Vivo um tempo em que é inútil morrer.
Sobrevivo a mim mesmo como um bagaço no chão.
A vida é a pura desordem.
A vida não tem mais nenhuma justificação.

       Gregório Vaz - Metamorfoses de Ofídio
       


sexta-feira, 13 de maio de 2011

SÚPLICA AFRICANA




Não deixem morrer o baobá da Colina Vermelha.
Dentro dele foi enterrado meu pai,
dentro dele foi enterrado o meu avô e o meu bisavô,
todos estão enterrados dentro do baobá da Colina Vermelha.

Eu serei enterrado dentro do baobá,
o meu filho será enterrado dentro do baobá,
e talvez o filho dele. É garantia de vida eterna
ser enterrado, não na terra, mas dentro do baobá.

O baobá da Colina Vermelha pode viver ainda
uns cinco ou seis mil anos, isto é, pode viver até a eternidade.
Não deixem morrer o baobá da Colina Vermelha,
não deixem morrer o meu baobá, a árvore da minha família.




segunda-feira, 9 de maio de 2011

O POETA É UM LAMBE-LAMBE




CÓDIGO



Poesia é palavra
na renda de bilros

O poema é forma
aberta e fechada

A rosa e o relógio
espiam de bruços
no bronze do espelho.


   LAMBE-LAMBE

O poeta é um lambe-lambe
em busca da própria face.


    AUTORRETRATO EM PRETO E BRANCO

Todo poema é um autorretrato.
Uma pedra, um pássaro, um ovo, 
sempre têm a cara do poeta.

O poeta investiga o tempo perdido,
Deus, a transcendência, o êxtase,
mas está à procura de si mesmo.

O afogado no espelho
sempre tem a cara do poeta.


______________

Estou no Cronópios: http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=5013




sábado, 7 de maio de 2011

NO TAPETE DE SÓCRATES



                                   
MATÉRIA DE POESIA

Faço de pedra o meu poema
de terra
e água.

Faço de sangue o meu poema
de suor
e dor.

Faço do tempo o meu poema
de memória
e esquecimento.

Faço da morte o meu poema
de perda
e permanência.



JUSTIFICATIVA

Sócrates, quando estava para morrer, quis aprender a tocar cítara.
 – Mas para quê? – disseram. – Você está para morrer.
– Ao menos terei tocado a minha cítara – respondeu.
Como Sócrates, eu escrevo os meus poemas.



quarta-feira, 4 de maio de 2011

PLENITUDE




PLENITUDE

Não sei como começa um poema,
não sei como termina.
E afinal, nem sempre o começo é o começo
e o fim é o fim.

E o recheio?
O que vem dentro é o que importa.
O fim e o começo muitas vezes se contradizem,
mas o recheio é música pura para os ouvidos
e para o corpo todo.

Nem todo poema começa com uma maiúscula,
nem todo poema termina com um ponto final.
No princípio da criação já havia uma nota ecoando
– e essa nota é uma melodia completa.
No fim da criação, continua-se a ouvir a melodia.

Mas então o poema é música?
Pode ser, mas também pode ser um gemido.
Ou uma explosão. 
Talvez a ausência de ruído.
Mas nunca será o nada. O poema será sempre
o oposto do nada. O poema é a plenitude.


segunda-feira, 2 de maio de 2011

O CASULO DA VIDA

Ninho de graveteiro
                            



 


O CASULO DA VIDA

As pálpebras caem,
e as palavras, inúteis. 
Os canários já não cantam,
e caem.    
A pedra brilha ao sol,
como uma lápide.
Os teus passos se calam,
no jardim da ausência.

Como decifrar o casulo da vida?
As asas aprendem o desígnio de não voar. 
No entanto, sabemos quem somos.
Sabemos Deus.
Nada nos falta, apesar da humana fraqueza.

A areia tem a forma dos nossos pés.
A justa medida.
O mar nos chama,
e nos ministra lições
de partida: partir é viver.
Não queremos, ainda, o esquecimento.
Nem depois, no espelho de Deus.

Os barcos sofrem na praia, apodrecem,
mas guardam a memória das viagens, do infinito.
Um pouco de terra e escuro, nosso domínio:
que morra e nasça a semente da eternidade.