terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Inventário















O inventário de seus destroços é o melhor poema de Robinson Crusoé. Retorno a essa idéia de G. K. Chesterton porque não vejo melhor diante do inventário deste ano que se finda. É impossível fazer-se o inventário completo de um dia ou um ano. Mais fácil, portanto, fazer dos seus destroços. E mais importante. Essencial. O que sobrou, o que não pereceu é o que realmente interessa.

Álvaro Moreyra diz que nos recordamos com saudades do passado, mesmo que então tenhamos sido infelizes. É uma felicidade o próprio ato de recordar. Nada, quando lembrado, é jogado fora.

Queremos desesperadamente lembrar, mesmo que o excesso de memórias nos sufoque. Como aconteceu com Funes, o Memorioso, de Borges, que lembrava cada palavra, cada nuvem, cada folha de árvore. Mas Funes era um personagem de ficção. A Borges interessava-lhe a memória, como parábola do tempo ou do próprio universo.

Queremos desesperadamente lembrar, como se esquecer fosse uma doença terrível. Como se o Alzheimer nos atacasse em cada pequeno esquecimento, no mínimo desvio de atenção.

O que sobrou de 2008? O que é importante desse ano que passou? A nossa memória é falha, lembramos as coisas próximas, as mais risíveis ou pitorescas, às vezes as que mais nos fazem sofrer. Por que não falar do que houve de positivo? De tudo que construímos neste ano?

Abrir os olhos à luz, respirar o ar puro, sorrir, alimentar-se, sentir o fluxo da vida. O dom da vida, a beleza da vida, essa graça é salva do naufrágio sublimemente. Nem percebemos que o próprio ato de viver faz parte do inventário de tudo de precioso que salvamos, que levamos para o próximo ano. Deus seja louvado pela vida e pela morte, que nos faz sentir mais vivos, que nos faz sentir mais precioso o dom de viver.

Levamos a vida para o ano que se inicia. A vida é o que permanece.

_____________________________________


"O velho está morrendo!", lamentava meu pai todo final de ano. "Quem?", todo mundo perguntava, como se a piada fosse nova. A piada era nova.

Rei morto, Rei posto. Feliz 2009 para todos!

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Árvore de Natal


Nunca pude esquecer aquela noite. Era o primeiro Natal depois da morte de Mamãe. Sempre, toda a vida, ela e Papai, de noite, pertinho do Natal, armavam a nossa árvore, com muito carinho, Lininha e eu sentados ao lado. Agora, pela primeira vez, a gente foi cedo pra cama. Eu logo dormi, Lininha me acordou.

– Vamos! Vamos!

– Vamos onde?

– O Papai... Papai foi...

Entendi. Me levantei, fui com ela. Papai tinha ido armar a Árvore de Natal, a gente não ia deixar ele sozinho. Então, os dois bem juntinhos, a gente foi caminhando pelo corredor. Os chinelinhos de Lininha, teque, teque, faziam barulho no soalho. Falei pra ela, ela tirou eles. Estava tudo escuro, muito escuro mesmo. Então a gente foi andando mais devagar, devagarzinho, encostadinho na parede. Tinha uma vaso de avenca no meio do caminho, Lininha bateu nele, e então a gente resolveu ficar ali. Logo, lá no fundo, acendeu a luz. Então a gente resolveu andar outra vez. Apareceu uma sombra, era o Papai. E a gente foi caminhando mais devagarzinho, com cuidado pro Papai não ver a gente. Ele não podia mesmo, estava tudo escuro; mas a gente via bem, que lá na sala, lá tava claro. Tinha um armário no fundo do corredor, a gente chegou ali e ficou bem juntinho dele e da porta. E ali, bem escondidinhos, a gente ficou olhando o Papai.

Ele pegou a árvore, arrumou bem os galhos, alisou tudo direitinho, pôs em cima da mesa, ficou olhando pra ela. Depois se sentou, baixou a cabeça, olhou de novo a árvore, baixou outra vez, fez que assoou o nariz, passou a mão nos cabelos. Ah, a gente gostava de cariciar aqueles cabelos. Eu tava pensando isso, Lininha me chamou.

Olha!

Olha o quê?

Bobo! – ela falou e eu vi que ela tava brava mesmo. Mas logo ela continuou: – Olha! Ele está se levantando agora. Abriu a janela. Você sabe pra onde ele tá olhando?

Pro cemitério.

Psiu! Fala baixo. Papai percebe.

Então era isso! Eu já tava desconfiando que Papai tava chorando. Tava um quadro tão feio o Papai arrumando a árvore, sem a gente perto, sem... sem a Mamãe! Lininha, ela não vai voltar mais mesmo?

– Viu?! O Papai percebeu. Eu não falei pra falar baixo!

Então a gente viu o Papai se voltar e olhar pra gente. E então a gente saiu de detrás da porta e foi caminhando pra ele. Ele cruzou os braços, olhou bem pra gente, parecia que estava bravo. Mas logo ele se baixou, abriu os braços, chamou a gente. Então a gente foi correndo e logo tava os três abraçados. E a gente chorou. Papai chorou. E eu. E Lininha.

Depois Papai se levantou, a gente no colo, e foi pra janela. Apontou pro cemitério, lá longe. Os eucaliptos na estrada subindo pro cemitério pareciam fantasmas, meio pretos, meio cinzentos, balançando-se no vento. A gente não tinha medo, tava quase gostoso. Um ventinho macio trazia pra gente um perfume quente de flor e mato molhado. E a gente olhou depois pra mangueira no quintal. Veio um vento forte e derrubou um monte de mangas. E ficou ventando e ficaram caindo mangas. Depois parou, ficou tudo parado. E a gente ficou pensando, a mangueira era a vida, as mangas que caíam era a gente quando morria.

Mas Mamãe foi devagarzinho, não foi bruto assim – Lininha falou. Mas nem não acabou bem e a gente viu cair outra manga e não tinha nenhum vento, foi suave, bem devagar. Então eu falei:

Mamãe foi assim.

Depois a gente ficou ainda olhando pro cemitério, com uma dor grande, um peso bem pesado no coração. Pspt, bateu uma coisa na janela, a gente olhou, era uma rosa, bonita de vermelha, que se esfolhou todinha. Depois a gente olhou pra lua, ela tava coberta com muitas nuvens pretas, parecia que tinha um véu de viúva. Parecia que a gente via lágrimas caindo dela. Parecia que ela chorava com a gente a ausência de Mamãe. Não tinha nenhuma estrela no céu. Ligeiro a lua também sumiu. E então começou a chover. E a Lininha falou:

Tudo tá chorando com a gente.

E tava mesmo. E então o Papai desceu a gente no chão, fechou a janela e começou outra vez a arrumar a Árvore. Pegou os enfeites, arrumou bem direitinho nos galhos, pendurou todas as bolas, as lampadazinhas, de toda cor, e voltou a se abraçar com a gente. Então a gente se levantou, bem seguros nos braços de Papai, e apagou a luz. E tudo afundou numa escuridão bem grande, tava tudo preto. E então a gente procurou o botão das luzes da Árvore de Natal, e acendeu tudo. Como tava bonito! E como tava triste ali sem a Mamãe!

E então depois a gente sentou junto do pé da Árvore, e a gente ficou, os três bem juntinhos, velando a ausência de Mamãe. E tudo chorava com a gente. A chuva. Uma goteira cansada. Aquele passarinho piando, longe lá fora. E a Árvore sobre a gente era como se a Mamãe chegasse ali, ficasse com a gente, e falasse obrigado, gostasse da gente ficar ali.

E a noite foi longe, e veio o dia, e a gente ficou ali, até dormir de cansado, os três bem quietinhos, bem juntinhos, velando a ausência de Mamãe.


(conto de 1965, publicado na revista "Allere Flammam" do Seminário Santa Teresinha, de São Manuel, SP.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O homem nu

O homem nu andava de um lado para o outro. Dois jovens observavam sentados na frente
de uma loja. Acompanhavam, divertidos, cada gesto do homem nu. Que punha a mão na cabeça, como se refletisse muito seriamente sobre algum assunto, ou como se se lembrasse de algum outro, depois abanava as mãos, dava dois ou três passos antes de parar novamente.

Não era o homem nu do Fernando Sabino, que tinha vergonha, etc. e tal. O meu homem nu não tinha vergonha. Não viemos todos nus ao mundo? Não, não era isso que ele pensava. Não pensava em coisa alguma, embora eu tenha sugerido que fosse um pensador. Um pensador não se mexe – como o de Rodin – e o meu se mexia como o diabo. Tirava a camisa, olhava-a pensativo – o meu pensador, enfim, resolvera pensar? – e esfregava-a na bunda, como se se limpasse.

Já se viu que o meu homem nu não estava inteiramente pelado. Estava calçado com sapatos sociais pretos e meias brancas, vestia uma cueca zorba cor de rosa e de bosta – segundo os meus dois observadores – e, ainda, uma camisa branca social – igualmente manchada de bosta.

Por que a polícia não faz nada?, dirão os senhores. Calma, eu direi, a polícia ainda não havia chegado. Não chega sempre atrasada, a polícia? Por que chegaria em tempo para atender a um homem nu cagado?

Pois o homem nu estava cagado e se preocupava muito com o caso. Não com o caso da nudez. Mas da caga... Caga o quê? Não existe a palavra cagadez... Que outra usar? Não sei se o homem se preocupava com esta ou aquela palavra, isto é para os poetas. Os cagados se preocupam com a bosta.

Eu já disse que o homem não tinha vergonha. Não tinha mesmo. Parou quinze vezes – talvez nove, ou dez, vá lá, mas foram muitas as vezes em que parou diante da imobiliária ali perto, passou e passou a camisa nos cabelos, depois na bunda, ou vice-versa, sem vergonha das duas funcionárias que olhavam encabuladas.

Quando por fim chegou a polícia, a moto de um dos rapazes que se divertiam com o espetáculo do homem nu já tinha desaparecido. Não foi um comparsa do homem nu, o rapaz faz questão de frisar no dia seguinte, deu no jornal que o cara tinha problemas mentais.

Mas o que você queria? Que ele fosse normal? Nós somos normais? Normalidade por normalidade, é conveniente ficar de olho no que é nosso – a moto, a bicicleta, o carro, talvez a carteira. Afinal, o sol nasce e se põe para todos.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Guizos

Uma estrela cai no banhado.

As rãs coaxam.

Os juncos tremem no escuro.



O bambual se inclina.

Os guizos da cascavel

tilintam na brisa.



O grito do quero-quero

desperta o banhado.

O capim cintila em festa.



O cisne desliza

no lago quieto.

Uma rã mergulha.

Sementes


Um beija-flor pousa

na lâmina do arado.

O homem tomba a terra doce.



A romã explode

e as sementes são diamantes.

Os meus dentes gritam.



O salgueiro estremece.

Maçãs e ameixas maduras

esquecidas no chão.



Uma aranha desce da árvore

numa réstia de sol.



Um baque surdo no lago

e um melro voa

de um galho de cedro.



Uma cigarra quebra

as vidraças da tarde.





sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O Paraíso Perdido

1.
O meu coração pequeno rolava sobre os grãos de café no terreiro. A infância cresce com a beleza das coisas. O meu pai gritava mais alto que o tempo. As espigas da infância estralam no meu coração.


2.
Eu dava cambalhotas no pasto dos bezerros sob o sol amigo da manhãzinha orvalhada. Os meus irmãos eram cachorros ao meu lado, lambendo a paisagem com os olhos e a língua.

O leite espumava das tetas gordas das vacas para a caneca de lata nas mãos do meu pai. Nós éramos meninos e voávamos sem cabresto, com espuma de leite caindo do canto da boca. Montávamos a cavalo nos bezerros pequenos, caíamos sobre os montes de estrume verdolengo.

Era a vida que nos lambuzava as calças curtas. Nós partimos para a vida com o corpo lambuzado: ostento marcas vermelhas que não se apagam mais, daquele orvalho que conhecemos com os bezerros.


3.
Sou o menino no terreiro de café, sou o menino com um cão ao lado. Escrevo com orvalho e lágrimas da infância nos olhos e na alma. E sobrevôo o dia que se põe no rio eterno como um deus vermelho.


4.
O menino está sentado num grande tronco de árvore, à beira de um alto barranco. O tronco é roliço, grosso, muito maior do que o menino; é liso, escorregadio, poderia derrubá-lo no abismo.

O menino encantado olha para baixo; é um fascínio, o mundo tão lá no fundo.

Um córrego corre, gorgolejando entre as pedras; brilha ao sol, a água de metal, de luz. O menino quer mergulhar nessa água, que mergulha em seus olhos; e flutua nessa luz, sentado no grande tronco, pairando no espaço.


5.
O menino grudado na terra vermelha, nu, ao sol. Brotam da terra gotas d’água, vermelhas, da comunhão com o sangue da terra, e brilhantes, cada uma com o menino dentro. O menino brota do barranco, manchado com os respingos da terra molhada.

O barranco domina, é a paisagem, com as gotas d’água porejando. Algum verde, de algum pouco capim, e o céu azul acima.

Tudo é a terra vermelha e o menino grudado, com um ar feliz. Os borrifos de água, cada vez maiores, brotam da terra, querem jorrar, inundar o mundo de luz vermelha.


6.
O café verde e vermelho rebrilha no terreiro.

O pai vai e vem com o largo rodo revirando os grãos de café.

Os olhos do menino giram ao sol. Regiram. É uma festa: o pai forte, enorme, as pernas longas, as largas passadas entre os grãos de café, que saltam no ar, ao sol.

O menino é muito pequeno, está sentado num canto do terreiro, tem um estilingue na mão direita e um cacho de mamonas na esquerda; um embornal de pano verde pende do ombro.

À direita está a tulha de café; à esquerda, abaixo, a casa e o córrego; atrás do menino, um bezerro pastando, e, à frente, o pai e o sol, os dois senhores daquele vasto mundo livre.


7.
Tenho uma cicatriz na minha perna esquerda, um bom palmo de minha mão de homem, de dedos compridos, da metade da perna abaixo do joelho, até alguns centímetros acima.

O pasto era belo, sob o sol; era o meu espaço, onde eu era livre, onde corria e voava sem peias; eu era livre como os bezerros, os potros, os cavalos. Eu galopava como um cavalo selvagem no coração da vida.

Mas aí vieram as vacas, veio o touro soltando fogo pelas ventas; e eu me tornei um potrinho trêmulo, recém-nascido, transido de medo; e eu tentava correr, trançando as perninhas tontas; e a cerca de arame farpado era intransponível, os fios de arame esticados, as farpas pontudas.

E o touro escarvando o chão, bufando, eu sentindo o bafo quente na minha carinha de bebê chorando; eu me arremessei por entre as farpas brilhantes, num gesto desesperado, louco; e a minha perna ficou dependurada, rasgando-se, mais e mais, sangrando, sob as ventas do touro ali estacado, imóvel.

O sangue vermelho, o sol vermelho, o touro de fogo, a dor de fogo; tudo o tempo consome; resta a cicatriz, galardão.


8.
Os tijolos gastos do chão da cozinha. O picumã nas telhas pretas como morceguinhos dependurados. O quarto dos arreios. Uma porta que não se abria nunca. As réstias de sol entre as réstias de alho.

O pai fazendo vassouras à noite. O lampião de querosene, a lamparina, as sombras esvoaçantes. O menino acompanha a dança das sombras subindo pela parede até as vigas, os caibros do telhado onde uma raposa fez seu ninho e pariu quatro raposinhos. O menino tem dó dos raposinhos mortos e aperta a barriga, a sopa de mandioca fumegando no fogão a lenha.

O menino aperta a barriga porque está com fome. O menino mais de cinqüenta anos depois está com fome dessas coisas pequenas, dessas miudezas de nada. Mais de cinqüenta anos depois ainda pinga leite das tetas dessas imagens miúdas da casa da infância.


9.
Mais de cinqüenta anos depois sou o menino bebendo o leite e o sangue da terra, chorando o Paraíso Perdido, sentado na árvore sobre a ponte, no dia grande sobre o monte em chamas.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Iluminações

ILUMINAÇÃO

Era uma pedra dourada.
Quando se abriu, voaram diamantes.
Pombas brancas na tarde azul.



ALVORADA

Gira a roda d’água.
O monjolo pila o milho.
Um galo bica a manhã.



ÊXTASE

As frutas estão maduras.
Colore a manhã a seda simples da brisa.
A vida é perfeita no pomar do dia.



INVENÇÃO

O canto do pássaro inventa o pássaro.


AVALANCHE


A lua entre as pedras
faz cair da montanha
uma avalanche.



OS AÇAFRÕES


A cor dos açafrões.
Giram no vento as folhas
e o grito dos pavões.


POSSE


Todas as estradas
se encontram no meu olhar.
É minha a paisagem.


O PASTOR


Um pássaro num sino,
na alta montanha,
tange as nuvens.



RESÍDUO


A cigarra deixou
no tronco da árvore
a casca e o canto.

NÃO ME ENSINEM A MORRER, DIZIA MEU AVÔ

No meio da noite

deitado

em decúbito dorsal

como um morto


no escuro

quase líquido de tão escuro

quase me afogando entre os peixes e as estrelas

apagadas


como quem não quer nada

(não queria nada)

eu me descobri mortal


como se já não o soubesse

como se fosse mentira

que vamos todos morrer


e só eu não o soubesse

e como se saber mudasse alguma coisa

na loisa ou lousa (são complicadas as palavras)

do destino


a lua entrava enorme pela janela aberta

entrava a via-láctea com todo o leite das estrelas

apagadas, esfumaçadas, leite feito bruma

no mar-alto baixando dentro de mim


falei Vou morrer

e era como se estivesse morto

não conseguia me mexer

os olhos escorriam pela face


me lembrei da tão bela morte na sua face

mas a minha não poderia estar morta


eu estava morto

embora não me mexesse

um morto se mexe terrivelmente

para cá e para lá, não se aquieta na cova

mesmo que não haja cova


eu estava morto no espelho

mesmo que não houvesse espelho

para eu me ver morto


eu estava morto sobre o mármore de um túmulo

não meu


o dono do túmulo me expulsava

eu queria ir embora

com meus quatrocentos cavalos

mas não me mexia


fora só me descobrir mortal

para estar morto

sobre o mármore inútil

com nenhum pássaro pousado sobre meu cadáver


e o além?

as dúvidas do além-túmulo?

um cadáver repousa quieto como uma árvore sem mar

como uma enxada enferrujada debaixo da escada

como uma pedra quando é mais pedra a

pedra na mesa da sala de visitas


o além-túmulo estava aquém

e eu dormia finalmente

e ressonava ressonava como um morto não ressona


quando me levantei no dia seguinte e me olhei no espelho

não estava lá

mas já não me importava


tinha aprendido a lição de morrer:

um morto cala a boca.


quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Alba e Mattina

“Alba” é a minha leitura de “Mattina”, o poema mais famoso de Giuseppe Ungaretti (1888-1970). “Mattina” é a prova de que poesia é intraduzível. Como recriar em outra língua a beleza e a amplitude de visão daquele punhadinho de palavras?


Quem não se lembra de imediato (e para quem se lembra, para se deliciar mais uma vez com o encantamento dessas palavras), o poema é isto:


Mattina


M’illumino

d’immenso.


Um poema completo, que vai tão longe, de perder o fôlego. Como recriá-lo em português? E já usei duas vezes o verbo “recriar”. Não gosto muito desse termo para me referir à tradução, mas que outro usar? Transcriação? Augusto de Campos traduziu: “Deslumbro-me / de imenso.” Onde fica a iluminação, que desde Rimbaud, é uma explosão nas entranhas do universo?


Prefiro pensar em tradução como um subsídio para o leitor ler o original. Há casos dificílimos, como esse de “Mattina”. A minha seria básica: “Ilumino-me / de imensidade.” Mas falta nela, como em todas que conheço (não por deficiência dos autores, mas pela dificuldade da realização), a magnitude e a iluminação do texto de Ungaretti.


Eu preferiria falar na possibilidade de traduzir-se o espírito do texto, como queria Borges. Na prática, a gramática da criação (Steiner) é outra.


Prefiro dizer que “Alba” é um poema meu, criado d’après “Mattina”, de Ungaretti.


Alba


A dor das ameixas

abrindo-se à luz.


*


Não gosto de explicações de poesia, principalmente da minha (da do próprio poeta). O autor apresenta o poema, o leitor frui a poesia ou ela flui por ele.


A comparação é feia, mas costumo lembrar a piada. Perde toda a graça se você precisa explicar. Verdade que há maus contadores de piada, mas é freqüente encontrar-se maus ouvintes. É a mesma coisa com a poesia.


Mas pensei em contar a história de meu pequeno poema quando li o comentário do Aldy Carvalho a “Alba”: “E a luz se fez e toda claridade absorvida na retina / Em toda claridade dos sentidos”. Era como se ele estivesse falando de “Mattina”. Talvez estivesse.

O caramujo

Uma mulher parou, depois outra, e outra, enfim uma dúzia de senhoras curiosas contemplavam o caramujo. Talvez fossem apenas quatro, mas ainda assim, eram mulheres pra caramba. O caramujo era grande, era enorme, mas não justificava tanto interesse. Nunca viram?

Veio com a chuva de ontem, alguém explicou. O Aran ajoelhou-se diante do caramujo, observou-o atentamente (as mulheres tinham se afastado). Olha que distância caminhou, disse, deve estar numa velocidade fenomenal.

Veio uma boa alma, na figura de uma velha algo caricata. Logo pegou de uma sacola plástica, queria por tudo salvar o pobre habitante daquela carcaça. Mas a lesma, pegajosa, com toda a sua gosma, adstringia-se ao solo.

Aproximei-me, toquei com o pé o caramujo. A velha enfureceu-se. Saia de perto, não machuque o coitado.

Queria levá-lo para a praça próxima, para que não morresse. Mas como desgrudá-lo do solo? Alguém sugeriu que se jogasse água. Inútil. A lesma, com a sua casa às costas, estava grudada definitivamente ao chão.

E não adiantava ninguém tentar ajudar. A velha o escorraçava. Era preciso salvar o bichinho, o que, ela deixava claro, não incluía arrebentá-lo.

O Aran filosofava, como se lembrasse Zenão e a tartaruga, outro bicho que carrega a casa às costas. O que é o tempo? O tempo não existe. Quando você pensa em medi-lo, quantos segundos, talvez minutos, se passaram desde a última investida do caramujo em direção a seu destino, eis que ele se locomoveu um outro tanto, invisível, mas existente.

Um outro jovem se aproxima, tira uma embalagem do bolso, tira um cd da embalagem, e usa-a como alavanca para deslocar o caramujo. Não de um lugar para outro, isso ele o faz sem ajuda, invisivelmente. Mas para deslocá-lo do calçamento. E realiza a façanha.

Entregue o animal à vetusta senhora, amiga dos caramujos indefesos, pensa que ela lhe agradeceu? Pisou-lhe no pé, com raiva. E quando uma outra senhora perguntou-lhe quem desgrudara o molusco do cimento, sabem o que ela respondeu? Foi aquele bundão ali!

Faça o bem sem olhar a quem, seja um Bundão. Assim com maiúsculas, para enfatizar bem o nome do praticante de uma boa ação às cegas.

A agradecida senhora afastou-se com o caramujo na ponta dos dedos. Como se carregasse uma carga preciosa.

E era. Uma lesma, lenta, lenta, que se deslocava como se não saísse do lugar, prova de que não só o tempo, mas também o espaço e o movimento não existem.

Todos os filósofos do mundo não valem um caramujo ao sol da tarde escaldante. Algo no universo foi transformado com a mudança do habitat desse caramujo. Tivesse morrido esmagado por alguma botina incauta, não seria maior o estrago.

O homem, com o concurso daquela vetusta senhora, interferiu na existência de um molusco. A vida no universo não será mais a mesma.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Nonsense, Ensaio sobre a Cegueira

O problema do nonsense é que sempre faz muito sentido.


Costumo dizer que sempre é muito tempo, mas não é do tempo que pretendo falar aqui. Aliás, escrever. A vantagem em se escrever, é que se podem encher laudas e laudas de papel sem dizer nada. Também se pode falar sem dizer nada: é o que todo mundo faz.


É mais uma tautologia. Fala-se e escreve-se demais sem dizer nada.


A inutilidade da linguagem é um fato incontestável. Talvez pareça absurdo, pelo menos ninguém quer admiti-lo.


A inutilidade das ações humanas é incontestável. Há um número minimamente certo de ações necessárias: comer e defecar, por exemplo. Mas as grandes decisões humanas? Ou as pequenas decisões (que não se pode medir o peso de uma decisão)? Trabalhar, realizar ações repetitivas e sem sentido (olha aí o nonsense!). Conviver, amar o meu semelhante, esse estúpido. Amar a mulher, ou no caso dela, amar o homem, esse estúpido e essa estúpida.


O meu semelhante é um estúpido, portanto eu sou um estúpido.


Bem que Flaubert quis escrever, em Bouvard e Pecuchet, uma compilação de toda estupidez humana.


Bem que Stanislaw Ponte Preta escreveu o seu Febeapá, ou, por extenso, Festival de Besteira que Assola o País.


Felizmente morreram Flaubert e Ponte Preta. Tinham um trabalho interminável pela frente.


Não há suplício pior para o homem, esse Tântalo, do que um trabalho interminável e sem sentido. O caráter de interminável tira qualquer sentido de um trabalho.


Quando se fala em nonsense pensa-se em absurdo, quando se fala em absurdo, pensa-se em Kafka. Não contem isso para Kafka. O homem escrevia com a maior naturalidade como se não tivesse noção nenhuma de nonsense ou absurdo.


Nós é que somos absurdos, queremos uma lógica (nossa, como se fôssemos lógicos) para a realidade.


Saramago escreveu um Ensaio sobre a Cegueira, que estupidez! Meirelles fez um filme, outra estupidez.


Em terra de cego quem tem um olho é rei ou caolho? E quem tem os dois, que suplício! Agüentar a cegueira do mundo inteiro e achar-se anormal por isso. Conceber-se uma idéia dessas é sinal do fim dos tempos.


Um homem estava sentado com um porrete deste tamanho, uns dois metros e coisa, na porta de uma loja fechada do Calçadão. Quando passei, aconteceu de ele se levantar e o porrete quase me arrebenta a cabeça. Ergui os dois braços e abri a boca para gritar: “Parece cego, cara!”


Fui ruminando o grito por uns duzentos metros, quando me lembrei de voltar. Lá vinha o homem com o seu bordão que mais parecia um porrete, toque, toque, apalpando o chão. De repente, pá! Trombou com um poste.


Era um cego e nem sabia orientar-se com o seu bordão. Entrou na minha crônica para provar que não tinha nada a fazer aqui. Absurdos da vida.


Mas dizem que o cego é um homem feliz, vive rindo, de bem com a vida. O meu cego nem praguejou contra o poste, o prefeito, Deus ou o diabo. Deu dois passos à esquerda, mais para o meio do Calçadão, e seguiu seu caminho. Feliz?


É verdade que o surdo vive de cara amarrada e o cego sorri para a vida. Por quê? O surdo não sabe o que falam dele e vive enfezado. O cego tem os outros sentidos apurados, ouve muito bem o que falam dele e, como ainda por cima não vê a cara do adversário, sorri.


O cego tem a serenidade dos estóicos.


O surdo vive enfezado, isto é, cheio de fezes. E ainda querem que sorria?


Voltemos ao Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago. Não somos todos cegos? Não sorrimos para a vida com a estultice dos cegos?


Podem chamar a essa atitude serenidade ou estoicismo, será sempre estultice.


Você nunca ouviu dizer que o mundo será dos estúpidos? Nós, que somos muito espertos. Nós, que nos amávamos tanto. Ou nos odiávamos, nos desprezávamos. Nós nos olhávamos com os óculos da indiferença, que é a forma mais elegante do ódio? Quem somos nós?


Chamamos o nosso semelhante de estúpido: somos estúpidos. O mundo será nosso, estúpidos? É estupidez querer apossar-nos deste mundo estúpido. Uma bela charada do absurdo.


sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Dentro da noite verde


Andamos dentro da noite quente, da noite verde, ouvindo os barulhos do escuro verde e quente. A Sônia queria fotografar a lua refletida nas águas do rio Tietê, e lá fomos nós através da longa ponte. Temerosos, sozinhos na ponte solitária. Como dois bichos, disse a Sônia. Como deuses, digo eu, que sou mais pretensioso.

É normal dos bichos a solidão escura. Interessante, indescritível: ouvir os barulhos da noite. As vozes, a estranha linguagem da noite. Porque a noite falava. Distinguíamos as cigarras, os grilos, mas ouvíamos mil outros sons – articulados, essa estranha linguagem. Não exagero ao dizer “mil outros sons”: uma infinidade de sons nos acompanhava.

Pássaros noturnos, que nos estranhavam. Vimos claramente visto, apesar do escuro, dois quero-queros nos enfrentarem: estávamos em seu terreno. Mas muitos outros pássaros não vimos: sabemos que fomos vistos e estranhados. Falamos dessa estranheza da noite: nós é que éramos estranhos. Nós, bichos da cidade, é que não estávamos no nosso elemento.

O gerente do hotel à beira rio nos animara: poderíamos caminhar à vontade, a ponte é monitorada, não há perigo. Alguma cobra poderia cruzar-nos a frente, mas não havia perigo. Não houve perigo. Houve maravilhamento.

Não vimos a lua refletida nas águas negras, lá embaixo, invisíveis. Vimos o brilho da lua multiplicado, num rodamoinho a um canto da ponte, multifacetada, como estrelas líquidas dançando nas águas inquietas, violentas e doces.

As águas iam e vinham, quebravam-se nas pedras, com estrondo. Longínquas, quase inaudíveis. Quase: nós as ouvíamos mais com a imaginação.

A Sônia fotografou a lua entre as árvores. Como a lua não veio mirar-se no espelho das águas, nós a contemplamos no espelho do ar da noite. Entre as árvores. Foi quando soubemos que a noite não é negra, mas verde. As fotos, batidas no escuro, deixam-nos ver o verde, nítido, forte, vívido. Como o verde é verde! Mesmo à noite. Porque a noite não é escura, mas verde.

O vento batia-nos nas faces. Havia apenas uma leve brisa, mas eu digo: o vento, o vento escuro batia-nos nas faces, nos olhos, no corpo todo. Sacudia-nos o corpo, talvez a alma.

O corpo não se mexia com essa brisa suave, esse ar quase parado. Mas a alma! A alma entrava em êxtase, eu diria, se o êxtase não fosse para os santos, em situações excepcionais. Não somos santos, mas vivíamos uma situação excepcional. A alma projetava-se para fora do corpo, com esse ar parado.

Filmei a Sônia caminhando no escuro: não se vê nem a sua sombra escura, a imagem de um fantasma caminhando. Mas ela está ali. Assim é a existência da alma: ela está ali.

No meio da ponte, entre o céu e a água, nós estamos perto de Deus. Por isso eu disse que éramos como deuses. Um fio muito tênue ligava-nos a Deus.

A alma estava ali. Levava-nos, num lance mágico, para perto de Deus.

Um fio muito tênue e firme, firmíssimo, ligava-nos a Deus.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O navio dos mortos

O navio dos mortos deixa o porto

À deriva, entre os calhaus


Uma estrela doente cai do céu

Agoniza na areia da praia


A fuligem das chaminés inunda o mar

E a minha garganta


Ajoelhado em folhas de sal

Acaricio a ossada do último cavalo


Os olhos secos afastam-se na bruma

São como um farol dançando no rochedo


Ergo o cálice de ouro negro

E bebo o vinho da dor


Os dedos sangrando seguram a linha

Da pandorga do eterno.


quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Chão de passarinhos

E me beijei de sol, me salguei com as andorinhas

E o guaxo era preto e era vermelho


Era vermelho e revoluteava como um diabo coxo

O sapo dá uma cambalhota e assopra


Cachimbo de sapo nunca se apaga

Sapo mija atrás da moita


Abre caminho para boi, para boiada passar

Sapo gosta de pau e pia-piou folharada d’água


Pó de pau, cupim, caruncho chamando o boi sozinho

Fazendo o sol arrebentar


Capivara fabricava chão por onde meu umbigo rastejava

Eu sou esse chão de passarinhos


Venho comer na minha mão, venho beber água no meu umbigo

Quebro uma e duas garrafas e o demônio se escapa


Nas asas do guaxo que redemunha e redemunha.