sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Poema de Natal

                                


                                         https://www.youtube.com/watch?v=FtVIbsmwauM

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Nocaute! O microconto de Maria do Carmo Corrêa

 

 

Nocaute

 

Julio Cortázar diz que, se o romance ganha o leitor por pontos, o conto deve ganhá-lo por nocaute. E o microconto? Deveria levar a nocaute no primeiro round.  Mas uma frase, poucas palavras, uns 300 caracteres, como levar o leitor a nocaute com tão pouco?

Estou com o livro de microcontos da Maria do Carmo Almeida Corrêa nas mãos (Pouco importa – Microcontos, Editora Spessoto, Bauru, SP, 2021) e a primeira ideia que me veio foi essa, antes mesmo de ler. Maldade minha, que sou leitor e autor de microcontos, e sei que um microconto começa por ser despretensioso. Como um haicai não pretende ser um poema, um microconto não pretende ser um conto. Maria do Carmo prima pela despretensão. E como quem não quer nada, dá um soco na boca do estômago da alma do leitor desavisado, que cai em nocaute.

O primeiro conto é uma paráfrase de um delicioso poema de Carlos Drummond de Andrade (que não escrevia poemas “deliciosos”), “Lembrança do mundo antigo”. Quem não está familiarizado com a poesia de Drummond nem percebe. Deveria perceber. Maria do Carmo está dando a chave de seus microcontos. Ou uma dupla chave: a paráfrase (arma de muitos contistas) e a memória (alma da poesia).

O microconto mais célebre que existe é “O dinossauro”, de Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” É paráfrase (não importa de quê) e poesia pura. Outro microconto começa a ser citado, atribuído a Hemingway.  Sou leitor de Hemingway, duvido que seja dele. Não é a sua linguagem. Não está em nenhum livro dele. “Vendem-se: sapatinhos de bebê, nunca usados.” Muito bom, mas também muito panaca para Hemingway. Tá, pode me provar que é verdade, mas a minha sensibilidade literária não acredita.

Excelente que Maria do Carmo não embarcou nessa, de forçar o nascimento de um história (muitas parecem ser tiradas a fórceps) em apenas uma frase. Os microcontos de Augusto Monterroso têm meia página, uma página e até mais, geralmente envoltos da vestimenta da fábula – que precisa um pouco mais de desenvolvimento. Como Maria do Carmo diz, em “Poema”, um de seus menores contos: é preciso chegar ao deslumbramento – sinônimo muitas vezes disso que falei acima: o nocaute. O leitor é nocauteado com o deslumbramento da poesia.

É o que diz num de seus mais sugestivos microcontos, “Plano”: “A morte pode conferir credibilidade à fábula”. Não é só Monterroso que entra no mundo da fábula para inventar suas histórias tão sugestivas. Sim, Maria do Carmo leva-nos a nocaute. No primeiro round, no início do primeiro round. Com luvas de pelica. Bem feminina. 

Foi um prazer a leitura de “Pouco importa”, microcontos que importam muito. Nestes tempos pesados, saímos de alma leve de suas histórias com tanta vida.

Vou deixar-lhes aqui dois de seus microcontos (a vantagem dos microcontos também é a facilidade para citá-los). Aproveitem, enquanto não tiverem o prazer de desfrutar da leitura de seu livro.

 

*

 

PLANO

 

– Foi só um jogo, senhor.

– Quer dizer que não havia um plano?

– Na verdade, não.

– Nenhuma conspiração?

– Pois é...

– E como explica todos esses seguidores?

– Sei lá...

– Pois vai pagar essa brincadeira com a vida?

– Pense bem, senhor Pilatos. A morte pode conferir credibilidade à fábula.

 

 

OVO

 

Não existe nada mais frágil que a felicidade, disse a palestrante. Segurou um ovo entre os dedos e aproximou-o da quina da mesa. Suspirei: que imagem fascinante de fragilidade!

Mas o ovo, quebrado, ainda existia. O que seria frágil, o ovo ou sua casca?

 

 

 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

O horizonte

 



O horizonte

 

Olho o horizonte com esperança. Sempre olho o horizonte com esperança. Depois olho o mundo a meus pés, mas sem desesperar. Nunca podemos nos deixar abater pelo desespero. Os ônibus, os caminhões, as motos passam sem parar. Cada um querendo fazer mais barulho do que o outro. Este mundo é uma disputa por barulho, por espaço, por desespero. Sim, até o desespero se disputa. O meu desespero é maior do que o seu. Sempre o meu desespero tem que ser maior que o seu.

As maritacas enchem a manhã com os seus gritos felizes. Felizmente há alguém que supera o barulho dos motores. Não por muito tempo, mas supera. E vejam que eu escrevi “gritos felizes”. Posso até ouvir os pios das andorinhas, e juraria que são pios felizes. Passam pertinho de mim, aqui no meu sétimo andar, como se quisessem cumprimentar-me. Como se quisessem partilhar a sua felicidade. Depois mergulham até lá embaixo, até a piscina, para refrescar as peninhas na água clara.

As nuvens refletem-se na piscina azul como o céu azul. As nuvens refletidas na piscina são escuras. No céu limpo são brancas, muito brancas, esgarçadas aqui, compactas acolá. Faz tempo que não vejo ou escrevo essa palavra, acolá. Logo cai em desuso. O nosso vocabulário vive em perigo de empobrecimento precoce. Eu disse “o nosso vocabulário”, o que é a mesma coisa que dizer “a nossa língua”. E preciso acrescentar que, quando digo “nossa língua”, estou dizendo “nós”. Sinal dos tempos? Sempre se fala em “sinal dos tempos”. Desde os tempos de Cristo se fala em final dos tempos, próximo, muito próximo. Uma guerra, e o homem sempre está em guerra, o vermelho do horizonte, vermelho como sangue, tudo lembra o fim dos tempos.

Já o Eclesiastes falava que tudo tem o seu tempo. Tempo para viver e tempo para morrer. Portanto não apressemos o andar da carruagem. A pandemia matou muita gente, demais, centenas de milhares de mortes desnecessárias, que poderiam ter sido evitadas, mas não é o fim do mundo, não nos desesperemos. O homem colabora para o fim da vida na terra, mas não nos desesperemos. Combatamos a insanidade humana, que tudo destrói. Combatamos a insanidade humana, que não chora seus mortos. Sem desespero, mas lutando para que as coisas não sejam assim. Sem aceitar passivamente a desgraça. Sendo solidários com a vida do próximo.

As maritacas gritam. São gritalhonas por natureza. A vida é bela. Olho o verde ao meu redor, para onde quer que eu olhe vejo o verde. Beleza, beleza e esperança. Sinal de vida – onde há verde, há vida. Pena que quando andamos nesta cidade seca sintamos tanta falta de árvores. A irresponsabilidade humana é sem limites. Esta cidade é chamada de – Sem limites. É ou era? Há limites para a estupidez humana. Esta última frase parece fora de contexto, mas o que é fora de contexto nesta vida louca? As coisas estão caminhando para o passado. Mas no passado havia muito mais verde, muito mais vida. Foi D. Pedro II quem começou a se preocupar com a preservação das nossas florestas. Os governantes pioram. O progresso faz o homem regredir.

Um bem-te-vi canta. Um bem-te-vi grita. Como se soubesse que o homem está ficando surdo, o bem-te-vi grita. Sempre me lembro de Cecília de Meireles e o seu bem-te-vi caprichoso, modernoso. Era um bem-te-vi econômico. Dizia apenas “te-vi”. Será que não nos via bem? Logo estaria dizendo muito menos. Estaria dizendo apenas “vi”. A verdade é que os animais têm o seu habitat invadido. Os sabiás mudam os seus hábitos. Começam a cantar com o escuro, noite ainda. É quando ainda têm paz. Uma relativa paz.

Falei de Cecília Meireles é não é para menos. Dia 7 de novembro comemoramos os 120 anos de Cecília Meireles. Foi uma vida de muita poesia. Cecília Meireles foi dos poetas que mais escreveram. Muitos poemas de alta qualidade. Manuel Bandeira escreveu pouco. Tamanho não é documento. Drummond, Murilo, Pessoa escreveram muito, muitíssimo. Aprendemos com Cecília Meireles: “Escrevo porque o instante existe/ e a minha vida está completa.” Mas também que o tempo passa implacável, que nem percebemos: “Eu não dei por esta mudança/ tão simples, tão certa, tão fácil. / Em que espelho ficou perdida/ a minha face?” Aprendamos a viver a nossa vida “completa”.