domingo, 26 de setembro de 2021

A morada da alma

                                                                                        Aristóteles
 

A Morada da Alma


A palavra grega ética em sua gênese significaria Morada da Alma. É uma imagem linda, que por si só eleva, engrandece. Nós nos sentimos maiores quando nos lembramos de que o nosso comportamento é norteado por uma entidade sublime já no nome: Morada da Alma. Devemos nos considerar seres superiores: é glorioso o solar que habitamos.

Nem importa que a nossa casa tenha muitos compartimentos. Nós nos esquecemos de que há o bem do João e o do André, da Maria e da Madalena. Indivíduo é uma palavra menor, não conta. Os indivíduos são mesquinhos, apequenam a terra em que pisam ou o ar que respiram. 

Então é difícil, quase impossível, pensar na alma de modo absoluto. Há quase infinitas almas neste mundo conturbado. Mas não deveria ser: à imagem e semelhança do Criador, todas as almas devem refletir-se numa só. Portanto, o bem é uno e indivisível.

Quem não crê em um Criador ou na alma, não passa pela prova do espelho em que todos nos refletimos: a carga de humanidade que carregamos é a mesma. O que trazemos de essencial dentro de nós é o que nos faz distinguir o bem do mal. Absolutamente.

Estou falando da alma de modo absoluto. Não há como debulhar os grãos da espiga: ela somente será uma espiga de milho ou trigo quando completa. Absoluta. Pode haver infinitas almas, mas são uma só: na concepção do mundo, na concepção do ser, na concepção do bem, não são muitas, mas uma alma que age. 

O que é bom para o lobo não é bom para o cordeiro? É esse o julgamento que pensamos emitir, em nossa sociedade. Parece um dilema ético insolúvel. Mas não deveria haver nem lobos nem cordeiros, todos vestimos a mesma pele. Estupidamente, não nos enxergamos.

Não estou querendo me apoiar no bordão de uma teoria simplista para determinar o que é o bem. Mas insisto em que não pode ter múltiplas faces, ser um para um indivíduo e outro para a sociedade.

Ainda mais: existe uma ética da situação? Eu sou eu mais as minhas circunstâncias, dizia Ortega y Gasset. Não há um limite para essa assertiva? Não seria um tanto vaga? Tudo tem limite. Eu sou mais eu, não sou condicionado pelas circunstâncias. Embora possam influir na qualidade do meu julgamento do bem, eu abro as janelas ou as portas da minha casa – a Morada da Alma! – quando e como eu quiser. 

Existe uma ética de resultados? Os meios determinam se o resultado é bom? Insisto num bem absoluto. Um bem relativo é como a mulher relativamente grávida.

Vivemos em sociedade e devemos agir perante os outros. Como? É a questão central da ética. E como os outros devem agir perante mim? Parece estar bem guardado ou escondido o parâmetro do bem ou do mal, a ética. Vem a velha história do lobo e do cordeiro.

Estou falando dos nossos homens públicos, do nobre governo da pólis. Estou falando dos deputados e senadores, que fazem as leis, e dos magistrados e desembargadores, que julgam se o nosso comportamento está de acordo com essas leis, uns e outros fundamentados na ética. Mas a ética, oras! Vivemos a ética do lobo. Quando políticos e juízes visam aos seus próprios interesses, são lobos. Desconhecem a morada da alma, a ética. Quando um presidente visa aos próprios interesses renega a morada da alma.

A sociedade, sujeita à ética do lobo, faliu. O glorioso solar que habitamos submerge no lodo dos pântanos escuros. A pureza da alma foi conspurcada, regredimos à condição de feras. Ruiu a Morada da Alma, ruiu o homem.

 

 

 

 
 

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Notas para uma oficina de contos


 

 
 
 

1.      Por que escrever contos? Machado de Assis cita Diderot: “Façamos contos, assim o

tempo passa e o conto da vida se acaba".

2.      Esqueçam toda a Teoria da Literatura! Vamos falar da prática do conto, de como o

contista faz seu conto. Sem teorizar, sem explicar. Se um cara não entende uma piada e você explica, ele pode vir a entender, mas a piada perdeu a graça. Aprender anatomia não ensina uma galinha a pôr ovos, disse T. S. Eliot.

3. Dalton Trevisan: O conto é sempre maior do que o contista. A invisibilidade de Dalton Trevisan. O conto reduzido ao mínimo, o essencial.

            4. De onde nasce o conto? Relato de experiências de contistas, como surgiu a ideia, como se encorpou, como se tornou um conto.

5. Por que o Vampiro de Curitiba? Que história se esconde por trás das histórias de Dalton Trevisan? É simplesmente o vampiro de almas, dos corações solitários, como ele diz? Lembro a sua decepção quando descobriu que tinha um irmão de outra mãe. Mas lembremos o que o próprio Dalton Trevisan já ensinou: somente o conto importa.

            6. A oficina de Tchekhov. O conto sem história. Quando não acontece nada. E está surgindo o conto moderno. A psicologia da personagem. A angústia. Enganosamente sem história.

            7.  Hemingway está presente em todas as oficinas de conto. A frase curta e seca. O diálogo seco. O não-dito. O contista é o repórter que não escreve a reportagem, mas o conto. A dor subentendida. A fraqueza do homem forte.

            É preciso ler e reler “Os assassinos”, de Hemingway. É uma oficina de contos.

8. Em “Como ler”, Harold Bloom indica “Memórias de um caçador”, de Turgueniev, como imprescindível. Fui conferir, não me lembrava de Turgueniev como contista, e confirmei. Seguindo o método dos românticos de fingir que é um caçador escrevendo suas memórias, Turgueniev revela-se um escritor atual num livro que é uma lição de como escrever contos.

9. A oficina de Machado de Assis. O contista precisa aprender com Machado de Assis. Ler e reler o velho bruxo, aprender as suas artimanhas, como ele escreve com aquela simplicidade de quem não usa artimanhas. Desde “Um apólogo”, que mais parece um apólogo do que o excelente conto que é. Parem de servir de agulha a muita linha ordinária. Até o inextinguível “O Alienista”, que mais parece uma novela do que um conto, pelo tamanho, mas tamanho não é documento.

10. Falando em tamanho, a lição de Guimarães Rosa, que começou escrevendo contos longos como a obra-prima do conto universal “A hora e a vez de Augusto Matraga”, ou um conto que ficou tão grande que acabou virando o monumento “Grande Sertão: Veredas”, até chegar aos contos curtos – por isso, além de outros motivos pessoais, os chamou de “Primeiras estórias” – como o excepcional “A terceira margem do rio”.

11. “As mil e uma noites” estão no início da história do conto. Sherazade contava uma história por dia para não morrer. É aí que está o busílis da coisa. Inventar histórias para não morrer.

12. Dostoievski dizia que “somos todos filhos d’ ’O capote’, de Gogol.” Quem não leu, leia. Quem leu, releia. É a base, não só dos russos. Também da literatura moderna: o homem comum como protagonista.

13. Gogol também escreveu “O nariz”, um conto precursor em todos os sentidos, do humor, da literatura fantástica, do nonsense, do surrealismo. Gogol, um escritor do Romantismo, se revelou um escritor à frente até do nosso tempo. É preciso ler e reler “O nariz” para não nos esquecermos de até onde a literatura pode chegar.

14. O conto era chamado de “a arte de Maupassant”, tal a perfeição a que ele chegou. É o conto tradicional – começo, meio e fim. Por que temos medo hoje do conto que conta uma história? Lembrem-se: o conto que não conta uma história não é conto. Observo ainda que Maupassant escreveu contos longos que estão entre as suas obras-primas, como “Bola de sebo”, “A pensão Tellier” ou “Mademoiselle Fifi” (que Dalton Trevisan homenageou dando esse nome a uma cadelinha, em alguns contos), em que não deixa de haver uma contundente crítica social e moral.

15. Tchekhov criou o conto moderno, sem início nem fim. O conto começa e termina no meio, no corpo. O leitor fica de boca aberta diante do fim de um conto de Tchekhov, como se dissesse: “Mas já terminou?” O conto é o fluxo de consciência, que revela o drama do personagem. Tchekhov corta o supérfluo em busca da perfeição formal e revela instantes únicos cheios de significação.

16. Lembrar da Bíblia – belíssimas histórias desde a Criação, a árvore do Bem e do Mal, Caim e Abel, Abraão e Isaac, José e seus irmãos, Sodoma e Gomorra, o Dilúvio, Jonas dentro do peixe, todas histórias fantásticas.

17. O romancista e o contista não se bicam? Dizem que o romancista não escreve contos, porque o conto é síntese ao contrário do romance. Verdade? Flaubert criou o romance realista com “Madame Bovary” e o romance moderno com “As tentações de Santo Antão”, depois publicou “Três contos”, que tem a belíssima história da infeliz Felicidade, que é uma suma de toda sua obra e ele mesmo julgou em uma carta: “Tenho a impressão de que a prosa francesa pode chegar a uma beleza de que mal se faz ideia”.

Sem falar de Machado de Assis e tantos outros romancistas e contistas ao mesmo tempo. Ser ao mesmo tempo poeta é mais difícil, embora o próprio Machado tenha 10 poemas antológicos.

18. Ainda hoje se pergunta: Mas o que é um conto? Conto é o que o autor quer que seja conto, brincou Mário de Andrade. É mesmo? Brincadeira é brincadeira.

19. É preciso a personagem. Captar o momento crítico da personagem. Chegar à sua epifania.

20. Por fim lembremos Shakespeare: “A vida não é mais que uma história contada por um idiota”. 

21. Mas Macbeth completa: “cheia de som e fúria”. E aqui já entramos no romance de William Faulkner “Som e fúria”, que é a história de uma família contada pelo idiota de família, Benjy, e essa maneira de narrar agrada tanto o romancista que ele acaba narrando como um idiota todo o livro.

22. Qual é a diferença entre o romance e o conto? O conto termina com a menina na ponta dos pés espiando a cena no interior da casa, isto é, termina onde começa o romance. São dois mundos distintos.