segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Arame farpado


O arame farpado

 

O pequeno elefante foge do cachorro enquanto um velho dá risada soltando fogo pela boca. Estão sob um mar convulso onde um peixe enorme se debate.

Uma cruz se ergue no horizonte ao lado de uma torre e um poste perpendicular. A torre se inclina como se fosse desabar. Pode-se ouvir uma carroça puxada por um cavalo descontrolado.

O arame farpado dói no olhar. O poeta está impotente diante da paisagem lunar. A palavra é o seu instrumento, mas todas as palavras estão pesadas como pedras. Sai fumaça da terra sacrificada.

Uma ponte em chamas cruza a estrada. As imagens se oferecem e se negam. Os homens cultivam o jardim com uma certa nostalgia.

Caminhões navegam na estrada com um barulho ensurdecedor. A viagem é a própria justificativa da viagem. 



 


 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

O pomar do inferno


 

O pomar do inferno 

 

 

Vivemos no inferno mas não o confessamos a ninguém

Cultivamos o silêncio

Porque não podemos falar do inferno a ninguém

A linguagem é uma ferida pulsando porejando pus

A linguagem é uma pedra

A linguagem não vale nada

A paisagem do outro lado da ponte é um abismo disfarçado

A paisagem do outro lado da ponte me atrai

A água ferve as luzes cegam os pássaros gritam

Cultivamos o silêncio como um pomar do inferno às avessas

 

José Brandão 1914

 



terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Meu encontro com Nélida Piñon



MEU ENCONTRO COM NÉLIDA PIÑON

 

Em 1991, com o meu livro “Presença da morte”, ganhei o Prêmio Bienal Nestlé de Literatura, ao lado de outros escritores, que se tornaram amigos queridos. Ficamos uma semana hospedados no Hilton Hotel, em São Paulo, ao lado dos principais escritores do país. Iríamos participar do Congresso de Literatura Brasileira, no Centro de Convenções Rebouças. Na hora do jantar, no primeiro dia, a Sônia e eu entramos no restaurante, escolhemos uma mesa num canto discreto e aguardamos. Logo em seguida aparece a Nélida Piñon, toda prestativa, acolhedora, carregada de gentilezas. Como que estávamos assim isolados?, disse e foi nos conduzindo a uma mesa cheia de escritores. Dizia à Sônia que a conhecia, de onde? Toda sorrisos. Em dois tapas, estávamos enturmados, já fazíamos parte dos escritores, como velhos amigos. Não posso esquecer tanta gentileza da Nélida.

Tive vários encontros memoráveis nessa ocasião. Na saída de um café da manhã, fui apresentado a Millôr Fernandes, que me disse: “Poeta não tem que ganhar prêmios, poeta tem que sofrer.” Não só porque a poesia nasce da dor, como se diz comumente, desde Homero: “Os deuses inventaram o sofrimento para que os homens pudessem cantar”. Admiramos Rachel de Queiroz – a sua disposição: era a mais velha, mas depois de um dia de palestras e depoimentos, saía à noite para ver uma peça de teatro ou um outro programa. Estive bem ligado a João Antônio e Luiz Vilela, dois contistas admiráveis, vi um escritor mais forte carregar João Antônio no colo, mostrando a familiaridade que ele tinha entre os escritores. Vi o admiradíssimo José J. Veiga, autor de contos de um realismo mágico, no centro de uma roda de amigos contando piadas comuns – é uma mágica ver o escritor assim despido de sua aura de ser superior.

Estive bem próximo de Lygia Fagundes Teles, Ledo Ivo, Ignácio de Loyola Brandão e tantos outros. Nélida estava sempre acompanhando Lygia Fagundes Teles, com um cuidado quase maternal, como se Lygia fosse muito frágil, muito desprotegida. E como se a função dela, Nélida, fosse ser o anjo acolhedor de todos nós, com seu cuidado quase materno. Na saída deixou uma lembrancinha para o meu filho Aran, que ainda tinha seus doze anos de idade e já escrevia, tinha praticamente pronto o livro “Brinquedo”, composto de textos escritos dos seis aos treze anos. Nélida deixou-lhe o seu último livro de contos, “Casa de armas”, com uma dedicatória incentivando-o na carreira das letras, prevendo mesmo um futuro encontro: “Aran, querido, será uma alegria conhecer você no futuro. O abraço muito carinhoso da Nélida Piñon. São Paulo, 3-7-1991.” Nélida não foi apenas a grande escritora, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras. Sobressai o seu sorriso acolhedor. Vamos guardar para sempre a lembrança da sua delicadeza.

 

José Carlos Brandão 


 

 

 

 

 


 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Pequeno poema em prosa


 

Pequeno poema em prosa

 

Um dia tudo isto será memória para os nossos filhos. É preciso esperar até que nem a memória exista. Olhemos as nuvens que passam como camelos no deserto. Olhemos a lua que se esconde como a tartaruga entre as pedras à beira-mar. O mundo está devastado, mas ainda restam algumas espigas saudáveis à beira da estrada.