quarta-feira, 28 de maio de 2008

pétalas











cereja


mulher deitada na terra

lábios vermelhos

cereja



marinha


a água na fonte clara

a mulher nua no cio


as gaivotas no azul

o céu e o mar e as risadas



os gansos


as rosas no lençol

e a minha

língua acesa


os gansos voaram

ao sol



os gerânios


os gerânios vermelhos

entre as folhas verdes e o sangue

ao sol


os morangos


morangos na garganta

tanta pressa na pele

nos lábios


o coração é um cachorro

pedindo água


a chuva o vento a folharada

andamos todos os caminhos


o amor bebe sôfrego

se afoga no abismo


nossos corpos resfolegam

absurdos



pitangas


eram tantas pitangas

no céu azul

na pitangueira verde


nós dois os

corpos estendidos quietos

ao pôr-do-sol


eu lhe mordi o pescoço

com as palavras nas mãos

e entre os dentes


o peito arfava

vegetal carne molhada

abismo

As mãos do oleiro











A poesia salta sobre a sombra.

As mãos do oleiro acariciam a argila,


O sopro dá vida ao cântaro úmido.

A semente por baixo do silêncio da pedra.


Ouça o solilóquio da água na terra.

O meu coração abraça o mundo


Gotejando argila e sangue.

As árvores se abaixam sobre o rio


Que passa cantando e gemendo:

Carrega as barrancas vermelhas com dor.


Um pássaro voa no azul do céu

Filtrando a luz do sol nas penas brancas.


A rosa bóia à flor d’água para sempre.

A poesia salta da sombra com a argila do oleiro.



A morte do artista











O meu quarto vazio jaz na penumbra.

Todos os espelhos estão quebrados.


Um velho me visita todas as noites

E me rouba os olhos e os sonhos.


Sofro dentro da noite atroz

Ou contemplo o sofrimento no sono,


Longínquo, entre as estrelas do abismo.

Não tenho mais contato com o chão da vida.


Cortei as minhas mãos inúteis,

Jazem no fundo da água pura dos rios do tempo.


Não me servem mais. Tocaram a beleza

E perderam-na. As ondas vêm e vão, com sangue.


O meu jardim canta ao sol, com flores e pássaros.

Eu é que não sirvo mais.

domingo, 18 de maio de 2008

A cisterna rachada











Deus encontrou a cisterna rachada.

Sou prisioneiro do universo negro.

Eu me deito sobre a pedra do silêncio.

Sinto o frio do abismo descendo sobre mim.


Como sair da concha? Como alçar vôo?

Ouvir a música das esferas e morrer.

Não é possível morrer para Deus.

A aflição da pérola é eterna.


Piso nos cântaros quebrados no caminho.

O menino morto bóia na água amarga.

Uma estrela afogada brilha ainda.


Os meus pés sangram na argila fina.

Deus vê as sombras no fundo da caverna.

A sombra da rosa não é a rosa.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

A gruta
















1.


As pedras respiram o silêncio.

O mar é silêncio.


Estou só como um pássaro sem árvore.

Não conheço os caminhos da noite.


Meus olhos estão fechados.

Meu coração vigia.



2.


Entre anjos, arcanjos e potestades

estou onde deveria estar.


Pássaros brotam das pedras

para beber os meus olhos.


poema de Sônia Brandão


segunda-feira, 12 de maio de 2008

O oleiro e a argila











A aflição de Deus na minha aflição.

Noite, que noite! A dor de Deus na pedra.

Como consolar o Criador?

O universo é vazio, só existe o caos.


Quando foi o início? Houve uma largada

inicial no poço do absoluto?

Por que o exílio de Deus? Não se bastava?

O oleiro precisou do vaso de argila?


O nada não existe porque Deus existe.

O alimento de Deus no sacrifício

do pão e vinho agônico.


Deus se despoja da divindade

e contempla a harmonia das esferas.

O oleiro molda na argila o vaso e o oleiro.

A música do silêncio











Escrevo na areia, para o vento.

Escrevo a palavra do silêncio.

O enigma é claro como a mesa e o pão.

Existe para ser enigma.


O universo é perfeito como Deus.

O poema é composto no espelho:

a imagem criada pela imagem.

Quando a pedra entalhada resplandece.


Por que o demônio não se cala?

Ouvem-se estranhos gritos de morte.

O poeta inventa a sua música.


As sombras do crepúsculo se estendem,

as esferas criadas se conjugam.

Dou forma à rosa que assassino.

domingo, 11 de maio de 2008

Por quê?










Por que, ó Deus?

A argila volta-se contra o oleiro,

a cinza desafia a chama.

A árvore oferta frutos amargos.

Os vasos foram modelados para o inútil.

O menino é morto em sacrifício

aos deuses da cidade.

A casa é posta por terra.

A rosa sangra no cristal,

a minha face turva-se

na água enferma.

A estrela queima os meus olhos.

Por que falas no vento, ó Deus?

Por que eu não estava presente?

Remorso










As estrelas do crepúsculo se apagaram,

nuvens escuras cobriram a terra.

As figuras vermelhas no horizonte

eram o mar em chamas,

eram o sangue derramado.

O céu se apagou.

A terra era uma mancha doendo.

Eu me perguntava por que tinha nascido.

Estava só como um morto.

A vida não tinha sentido.

Eu era como um deus arrependido,

eu criava o mundo para a morte.

O homem é um poema frustrado

como um ovo podre.

O retorno










Quando despertei dentre os mortos

nada estava mudado.

O mundo continuava vazio:

nenhuma estrela, nenhuma rosa

sobre a pedra do altar.

O meu cachorro agonizava sob a porta

do frio tribunal.

O meu cavalo cantava triste

sob os salgueiros, à beira do rio.

Todos os meus amigos me viraram o rosto

disfarçando uma lágrima, talvez.

Ainda eram meus amigos,

nada estava mudado:

eu sempre fora estranho e culpado.

O meu medo













O meu medo não tem a voz de um morto,

não tem a minha própria voz.

O meu medo é uma folha em branco

como uma lápide fria.

O meu medo não é o quarto escuro,

não é a igreja vazia na noite.

O meu medo é a paisagem nua,

com o abismo da rosa sobre a pedra.

O meu medo não tem o peso de um morto,

os mortos são leves como plumas brancas.

O meu medo não é a ferida nos lábios,

não são os olhos vazados.

O meu medo é Deus não me encontrar,

o meu medo é a minha própria ausência.

Sob a cinza










A casa ficará sob a cinza,

os meninos ficarão sob a cinza,

os cavalos, o galo, o cão e o ouriço,

as árvores ficarão sob a cinza.


Eu desenhei o meu nome sobre a pedra,

o meu nome ficará sob a cinza.

Eu sonhei o teu corpo perfeito;

o teu corpo, frio, sob a cinza.


As tuas asas de anjo, a tua alma;

as penas caídas na fundo do poço,

a tua alma afogada na água negra.


A chave queima a minha mão;

a porta jaz, queimada, sob a cinza.

O meu pai e a minha mãe, sob a cinza.

sábado, 3 de maio de 2008

O espelho d'água

Deslizo pelo espelho d’água como um pássaro

O teu corpo era uma pétala dourada sobre a água

O teu perfume pairava no ar azul

Os teus pés se ergueram com asas mágicas.


Eu fiquei sem voz no alto da árvore

Eu tinha a lâmina de uma faca nos olhos

Enxergava além do ser, a sua alma musical

As flores acesas iluminavam a seda dos caminhos.


Um cão perdido chorava no barranco, entre as chamas

Eu tinha um limão verde escondido nas pupilas

Eu sepultava meu próprio corpo sob as águas.


Um anjo tocava harpa e cantava a minha elegia

Eu era o meu filho morto embalado nas mãos do eterno

Deslizo pelo espelho d’água como a alma de um pássaro.

Na ordem do eterno

O navio navegava como um sonho sobre as nuvens

O mar abria os seus lábios vermelhos para o naufrágio


Mas eu ainda não havia chegado ao horizonte

Eu trazia as mãos carregadas com o ouro do arco-íris.


Os meus olhos estavam molhados do azul do céu

As águas do mar escorriam assustadas dos meus olhos


As minhas lágrimas não conheciam as praias desertas

Não era a hora do medo, da noite, do abismo final.


O meu navio ainda vai navegar por longes ondas

O mar vai crescer e se transformar ao meu comando


O meu sonho se desdobra maior do que o universo.

Tudo estará perfeito como uma pedra, como uma estrela


São meus todos os caminhos, são minhas todas as paisagens

Os meus pés pararão quebrados, em cruz, na ordem do eterno.

No alto da montanha

No alto da montanha,
carregando o sol no lombo,
o velho cavalo.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Escrever como as lavadeiras de Graciliano


Eu pretendia ficar com a última, ou as duas últimas frases do Mestre Graça, o enfezado Graciliano Ramos, que escrevia com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol, segundo João Cabral, e lhe bastava, porque escrevia com uma peixeira na mão para ter a certeza de que diria bem, mas a citação ficaria incompleta, perderia a delicadeza que o sábio bruto não tinha, aliás, não mostrava de ordinário, à flor d’água ou à flor da pele, e ficaria fora a real introdução para o que eu pretendo dizer.

Então lá vai. Afiai os ouvidos e ouvi. Se eu souber que ouviram, lendo, apenas ao que diz Graciliano, dou-me por bem pago. Apurai os ouvidos:

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes.

Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.

Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

Há quem pense que escrever é fácil. E é: basta juntar uma palavra atrás da outra, pesar, sopesar, ver se soa bem, se não se está dizendo besteira... Compliquei? É tão fácil dizer besteira. É tão fácil não dizer coisa nenhuma.

O que eu queria dizer é que é fácil escrever hoje, com o computador, que faz tudo por nós, ou quase tudo, facilita a vida que é uma maravilha. Eu queria ver você escrever no tempo de Graciliano, de Machado, Vieira, Santo Agostinho.

No tempo de Machado escrevia-se com pena de ganso – coitados dos gansos! Talvez de pato – e lixem-se os patos! Havia pouco e difícil papel, pouca e difícil pena – que, como o nome diz, doía. Havia pouca tinta, tudo tinha que se economizar: pena, papel e tinta – e, conseqüentemente, palavras, idéias, já que tudo era restrito.

Mas ao que sabemos, nem idéias nem palavras não se economizavam. Se tudo faltava naquele tempo, havia um elemento que sobejava: precisamente o tempo, o essencial, o ser responsável pela criação, pela elucubração do pensamento, o nó-górdio da questão.

Decifra-me, desata-me, corta-me com a espada ou com a técnica – e nada mais resta, e estamos no tempo da pressa, do descartável, do virtual. Ah, belos tempos em que se tinha tempo! O pensamento desenrolava-se palmo a palmo, pacientemente, no papel desdobrado na madeira carinhosa da mesa. A obra de arte era burilada interminavelmente.

Imaginem Vieira escrevendo, à luz da vela, cuidando para a pena de um bípede, o animal mais semelhante ao homem, porque se sustém sobre duas pernas e carrega uma cabeça pequena, de idéias, sobre a cabeça, cuidando para que a dor não respingue tinta no papel precioso, parando com a mão no ar e repetindo dezenas de vezes a frase que gravaria, repetindo até que soasse bem, com musicalidade, com harmonia de sons e idéias, dizendo exatamente o que pretenderia dizer, repetindo até a exaustão, tanto que, quando chegasse ao final do longuíssimo sermão, soubesse-o de cor, como o diria no púlpito.

Imaginem Agostinho escrevendo, nos estertores da Antiguidade, final do século IV, início do V, sob as espadas dos bárbaros destruindo os templos de Deus ou do saber, da palavra, considerada um ser vivo, de tão poderosa. Não ficava pedra sobre pedra do Império Romano, mas ficaria a obra que ele laboriosamente levantava com a pena – nem de ganso nem de pato! Imaginem escrever quando não havia sido inventada a tinta nem o papel e o escritor tinha que sofrer o martírio de esculpir a palavra mentalmente horas e horas antes de esculpi-la no pergaminho que se desenrolava gemendo sob seus dedos hábeis.

Dizem que Agostinho escreveu trezentas e trinta e duas obras, dizem outros que foram mais de mil e quinhentas, mas, em qualquer caso, escreveu muito mais e bem do que a maioria dos escritores, num idioma rude como o dos romanos, mas tornando-o maleável, apto à perquirição filosófica, e poético, porque se encantava com as palavras e com a beleza do que dizia.

Como um pobre escrevinhador de hoje se sairia dessa empreitada colossal, acima das forças humanas, que era escrever? Escreveríamos? Acomodados à facilidade do computador, conseguiríamos desenvolver essa habilidade tão primária que parece estarmos pela primeira vez na história formulando uma frase, gravando-a de forma que transmita uma idéia, torne-a viva, e que as suas palavras soem com beleza, como se para esse encantamento fossem feitas?

Tornou-se tão sofisticado e artificial escrever, que só mesmo lembrando as lavadeiras de Graciliano. Um viva à simplicidade do mestre, que busca na natureza as suas imagens, as suas parábolas. A comparação com as lavadeiras vale por uma parábola.

Fizesse o escritor com sua página escrita o que faz a lavadeira com a roupa suja à beira do riacho, que molha e torce, e novamente molha e torce, coloca anil, ensaboa, para de novo torcer e torcer, e, enfim, enxaguar, dar mais uma molhada, tirar a água excedente com a mão, surrar com raiva na laje, torcer novamente duas e três e mais vezes, até não pingar do pano uma só gota. Somente então pendura a roupa lavada para secar ao sol, sabendo que, por um acaso freqüente, uma sujeira de um bicho, da própria água, do vento, de uma distração, poderia levá-la a repetir toda a operação.

Acrescentei esse final, a parte que leva a repetir a operação, não para corrigir o mestre, que sabia disso, mas para alertar os leitores de que um texto muitas vezes sai falho, uma pequena sujeira pode levar os escritor a reescrever o texto – como a lavadeira a lavar novamente a roupa se descobriu uma pequena imperfeição.

E por fim a última lição do mestre: a palavra não foi feita para brilhar, mas para dizer. Amo a beleza da palavra, mas a sua função é, antes de tudo, dizer. Está bonito o texto, portanto bom? A beleza é enganosa, temos que nos lembrar de que o homem criou a palavra porque precisava dizer alguma coisa. O texto é belo e coerente com o quero dizer? Esta deve ser a questão.

Há quem pense que escrever é fácil. Vá lavar roupa na beira do rio para ver se é fácil.