quarta-feira, 22 de março de 2023

Rosa Luxemburgo


 


Rosa Luxemburgo

 

Rosa Luxemburgo ajoelhou-se

na beira do rio

pôs as mãos na água fria

quase gelada

Os soldados davam risada

O capitão soltou um palavrão

e atirou na nuca

Empurrou o corpo para dentro do rio

com a bota preta

Logo rosas vermelhas rodeavam

o corpo escuro na água calma

 

José Brandão

 



terça-feira, 14 de março de 2023

O homem no buraco

 



                                                      O homem no buraco

 

O Zé olhava as estrelas, e caiu no buraco. Era um poço de uns oito metros, seco, inútil, mal tampado por umas tábuas velhas, e com um pouco de capim e mato; e o Zé caiu no buraco. Foi se segurando nas beiradas do poço, foi se agarrando aos torrões de terra, que desbarrancavam com o seu peso; houve mesmo uma hora em que conseguiu se estender de uma parede a outra do poço, os pés de um lado e os braços do outro, e então foi pior, caiu como um sapo, de barriga para baixo; mas já estava quase no fundo, e quase não se machucou, pelo menos se apalpava, se apalpava, e não conseguia achar nenhum osso quebrado; dolorido, lá isso estava.

Olhou o céu, e o céu continuava lindo; achou que continuava lindo, coalhado de estrelas. Logo viu que não tinha sentido olhar o céu numa hora dessas; não, não se lembrou de amaldiçoar a hora em que ficou olhando para o céu em lugar de olhar o chão onde pisava; nem ficou apavorado, pensando que poderia estar perdido para todo o sempre, enterrado antes da hora; logo viu que tinha que chamar ajuda, e gritou, gritou até não poder mais.

Já se viu que o Zé tinha bebido um pouco, estava o seu tanto alegre, e, apesar de a queda ter curado uma parte da sua bebedeira, ainda continuava alegre. Só quando a garganta doeu de tanto gritar, só quando a garganta secou, e não havia água nenhuma para refrescar o seu desespero, foi que ele se lembrou de ficar desesperado. Chorou só um pouquinho, depois ergueu os olhos de novo para o céu, e sorriu. Não acontecia nada na sua vida, pensou, e agora estava acontecendo. E ergueu os braços ao céu, e deu graças a Deus pela vida e pela aventura que a vida afinal nos concede.

Encostou-se na parede do poço e foi deslizando devagar; sentou-se na terra fofa que tinha desbarrancado há pouco, pôs a cabeça entre as mãos, e sorriu. Era a segunda ou terceira vez que tinha sorrido; sorrir é bom, pensou; e foi baixando o cansaço, da queda, do susto, do álcool, e adormeceu. Acordou muitas horas depois, não sabia quantas, mas devia ser muito tempo; estava deitado, todo encolhido no fundo do poço; gostou, sentia-se bem. Não tinha bebido tanto assim, como se pode imaginar; lembrava-se do que tinha acontecido, tinha consciência do perigo que corria, afinal poderia não ser achado mais, ou poderiam demorar tempo demais para achá-lo, mas não se importava.

Deus provê, disse; Deus dá o frio conforme o cobertor, disse, sem saber bem o que estava dizendo; Deus ajuda a quem cedo madruga, disse, e se corrigiu: Deus ajuda a quem se ajuda, e resolveu se ajudar, e gritou. Não havia outra coisa a fazer, senão gritar. O lugar não era muito frequentado; às vezes alguém cortava caminho por ali; quem sabe alguém cortasse agora; e ele gritava. Gritou até não poder mais; gritou o dia inteiro, e a noite também; só parou de gritar quando não pôde mais. Subir pelas paredes era impossível; isso ele já havia tentado. Só havia o recurso do grito. E havia a sede, uma sede dos diabos; machucou as unhas tentando cavar, alguma água ainda poderia haver, mas o poço estava seco como uma pedra seca. Foi quando chorou de fato; estou perdido, concluiu, agora não tem jeito; e as lágrimas jorraram. Acabou adormecendo, talvez de fraqueza, certo que de cansaço, e de uma tristeza muito grande.

No dia seguinte foi a mesma coisa, os mesmos gritos; não, não os mesmos, já eram gritos desesperados; e já desesperava de gritar, não adiantava, ia morrer, e pronto; mas gritava. E veio a noite; e ele gritava. Percebia-se que era noite; o poço era escuro, mas alguma claridade penetrava entre as moitas de capim, de dia. De noite, tentava adivinhar as estrelas; julgava ver um brilho, pedras preciosas que cintilavam entre o capim, ou nas paredes do poço. Estava há dois dias ali; pensou em comer terra; tentou chupar uns torrões de barro, mas eles se quebravam de tão secos. Não tinha mais jeito, ia morrer, pensou. Mas no terceiro dia choveu, choveu pouquinho, mas choveu. O Zé gritava de felicidade, lambia as paredes do poço, e gritava. E eram felizes os seus gritos de socorro.

Anoitecia. Um casal de namorados passava, e estavam apressados. O moço loiro ouviu os gritos de socorro, a moça morena ouviu também, mas nenhum dos dois acreditou; poderiam estar enganados: eram gritos de muito longe, e eram gritos felizes. Passaram; voltaram.  Procuraram na noite deserta; noitinha, tempo de chuva, já fazia escuro. Quem gritava? Uns gritos tão fracos, parecia que vinham de dentro da terra. E eram estranhos, esses gritos; alegres, estranhamente alegres.

Por fim, a moça chamou o pai, chamou o tio, e procuraram, e acharam o poço, e dentro do poço o Zé, exultando de felicidade. O Zé que olhou o céu; era ainda tempo de chuva, mas uma e outra estrelinha se adivinhava por entre as nuvens; o Zé olhava e sorria; tinha cara de bobo olhando para o alto, e para baixo, e sorrindo. O Zé tinha todas as razões do mundo para sorrir; para olhar para o céu, e para a terra, e estar feliz.

                                                 


sábado, 18 de fevereiro de 2023

A fuinha e o bóson de Higgs

 



A fuinha

 

Uma fuinha mordeu um cabo

e desligou o Grande Colisor de Hádrons de Cern.

Foi o último gesto da sua vida,

não sobreviveu à descarga elétrica.

Um arrepio me percorre a espinha.

Um pequeno animal foi capaz

de interferir no processo da partícula de Deus.

 

 

 


sábado, 11 de fevereiro de 2023

Morangos silvestres

 




MORANGOS SILVESTRES       

 

 

O professor Isak Borg vê em sonho um relógio de parede

sem ponteiros.

Sua mãe de 96 anos mostra-lhe um relógio de bolso

também sem ponteiros.

 

Ela é uma mulher enfadonha mas não morre.

Ele está melancólico sob as árvores.

Descobriu que sorrir dói.

A lua tem uma cara triste, enfezada.

 

Ele olha os pássaros negros em debandada sobre as árvores.

Não vê a bactéria no microscópio.

A paciente morta gargalha.

Quem é mais idiota, a fé ou a razão?

 

O professor Isak Borg ouve o silêncio

Tudo foi dissecado

Não há perdão

Não restou nenhum morango silvestre.

 

José Brandão

 

“Morangos silvestres” é um filme essencial de Ingmar Bergman, de 1957.

 

 

 

 

 


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

O que disse Kaspar Hauser

 



O que disse Kaspar Hauser

 

Quero ser um cavaleiro que voa para um combate sangrento.
A música soa forte no meu peito, estou muito velho.
Os homens são como os lobos.

Não consigo imaginar que Deus, do nada, criou tudo.
Deixe as maçãs dormirem, estão cansadas.
Não posso imaginar o meu futuro, eu não tenho passado.

Sonhei com o mar e uma multidão subindo a montanha
no meio do nevoeiro. Lá em cima estava a morte.

Eu agradeço por terem ouvido a minha história,
agora posso morrer.