quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Êxtase

Quando voltou, a mulher
estava transformada em pedra.

E sorria, não com os lábios
nem com os olhos, mas com a alma

que se elevava do seu corpo
de pedra.

Um sino de ouro tocava.

Contemplação de Ouro Preto

Começo a minha peregrinação pela Igreja Nossa Senhora do Carmo, projetada pelo pai do Aleijadinho, que a terminou, e fez o altar lateral de São João Batista e o de N. Sra. da Piedade, além do Lavabo da Sacristia. Que Santo Furor moveu a mão desse artista sofredor? Que Fé moveu a cobiça desse povo – a Santa Fé que move montanhas, extraindo o ouro das suas entranhas – para erguer esses monumentos dignos somente de Deus?

Falei que comecei a minha peregrinação – porque foi uma peregrinação que eu empreendi, uma caminhada buscando um lugar que somente a fé explica, que foi a fé e sua força tamanha, e suas contradições, que ergueu. Qual é a jóia mais preciosa do universo? O homem quer erguer templos preciosos como uma jóia, que se multiplica, para chegar a Deus, a jóia mais preciosa.

Mas preciso caminhar, e entro no Museu da Inconfidência, solene e algo misterioso. Cada passo que dou neste lugar é um passo rumo ao incógnito, lá onde mora o tempo com suas barbas antiqüíssimas. Vou separar duas imagens deste museu, não quero falar muito. A primeira são os madeiros do cadafalso de Tiradentes. Quase escrevo da cruz, que foi numa cruz que primeiro pensei quando vi os estranhos madeiros, cruzando-se como as traves de uma cruz. Não foi à toa que representaram Tiradentes como a figura de um Cristo, com longas vestes e barbas, e o olhar sofredor, nesta terra de tantos Cristos agoniados.

A segunda imagem é a do Pelicano Eucarístico, que vi novamente no Seminário São José, em Mariana. O pelicano é bem o símbolo de Cristo, que deu o próprio sangue pelos seus filhos. Lembro-me do poema que tive a ousadia de cometer: “Pelicano”: “Abro o peito/ para o meu filho, o poema.” Há algo de elevado, de sagrado no poema. Poderia muito bem ser um pleito ao divino. Mas seu eu soubesse dessa simbologia crística, teria vergonha de escrever esse poema.

Volto a Tiradentes. Na praça, em frente ao museu, o monumento aos Inconfidentes. E a lembrança: neste lugar ficou exposta à execração pública a cabeça de Tiradentes. Nenhuma explicação –– todos sabemos da degola do cadáver, do esquartejamento, a cabeça e o corpo e membros salgados para que se conservassem, e que todos aprendessem a lição: Este é o destino de quem se levanta contra a coroa. Pouco importa quem foi Tiradentes, o quanto de herói ou fantoche foi. Lembro quanto pode ser cruel o homem, bestial. E querem que Deus ou a História nos perdoem. Bestiais.

Volto à paz na Igreja de São Francisco de Assis, do amor aos animais, da humildade, e tanta que tem sempre nas mãos uma caveira: Somos nada, todos nos nivelaremos quando formos caveiras. Por isso no seu poema mais famoso, o Cântico ao Sol, também conhecido como Hino à Vida – é um hino à vida! –, lemos este verso singelo e terrível (que eu emprestei para usar num poema meu, não sou original): “Louvada seja a morte, nossa irmã.”

Desço mais alguns passos – ah, quanto descer e subir ladeira! Como têm boas pernas os mineiros, ou como têm santidade, segundo uma companheira de peregrinação... Mas desço alguns passos, sofridos, doídos, que não tenho pernas tão boas, e muito menos santidade, e chego à Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões (Mercês de Baixo, que há mais igrejas dedicadas a N. S. das Mercês, que mercês do Alto é o que mais se precisava nesta terra de infortúnio). É uma igreja pobre, o teto apresenta buracos, as tábuas podres ao abandono. Chego na hora da bênção final do bispo, que celebra a missa com o povo simples do lugar.

Irei participar da celebração eucarística – do começo ao fim! – na Igreja Nossa Senhora da Conceição. É preciso dar graças a Deus por estar aqui, por este mergulho na história, que é quase um mergulho no mistério. Quase, digo, porque mistério é o nome de Deus. Mas não mergulhamos no mistério, em Deus? Que o Altíssimo me perdoe, mas o homem é um bicho tão pequeno e quer voar até o Absoluto. E quem me garante que não voa? Ou mergulha. Saio banhado, senão de ouro, pelo menos de luz. Tanto que pensei em dar a esta crônica o título de Êxtase em Ouro Preto – porque Contemplação já é o nome do livro de poemas de Murilo Mendes, como se eu me atrevesse a ir além de um dos maiores poetas brasileiros e estupendo poeta religioso.

No dia seguinte, sou enviado a mais uma celebração do Mistério Eucarístico, na Igreja N. S. do Pilar. É a mais rica das igrejas que vi, essa e a Catedral da Sé, em Mariana. O Padre Simões permite algumas fotos, lembrando várias vezes, durante a missa e depois, do povo peregrino de Bauru. Lembra-nos da íntima ligação entre a arte e a fé, que não podemos ver apenas o aspecto material, a riqueza das igrejas. Não precisava, querido padre, eu sei que a fé e a arte são manifestações do espírito do homem, é com a arte que eu dou uma forma visível ao que eu tenho de espiritual, de que a fé faz parte. As obras do Aleijadinho, de Mestre Ataíde e de outros artistas são a forma concreta de sua fé, retratam a fé do seu tempo, com todo o seu estranhamento. Mas o que não é estranho neste mundo? O vulgar? Se o espírito for estranho, estou cansado de facilidades vulgares e, portanto, não tenho como não escolher o estranho e difícil campo do espírito.