sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Eu acuso! - Quem matou o último lobo do cerrado?

 

Eu acuso!

Quem matou o último lobo do cerrado?  

Não resisti. Tinha que usar a mais famosa manchete da história como título da minha coluna. “J’Accuse!” era o título do artigo de Émile Zola, o criador no romance naturalista, na primeira página do jornal "L’Aurore". Tinha um subtítulo: “Carta ao Presidente da República”. Acusava o presidente e o próprio Exército de leniência no caso Dreifus, oficial acusado de espionagem, mais perseguido pelo fato de ser judeu: “Meu dever é de falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu."

Dizem que meu amigo Lázaro Carneiro morreu de depressão. Quem não é próximo vai dizer simplesmente que ele morreu de covid. Sim, ele estava tão abatido pela depressão, tão sem forças, que não aguentou quando a covid chegou. Mas o buraco é mais embaixo. Tenho que falar, tenho que acusar que Lázaro foi assassinado. Não vou acusar o presidente ou o governador por essa morte. O buraco continua sendo mais embaixo. Quando criança, no lugar onde eu morava, para qualquer lado que olhasse eu via cafezais. Era uma riqueza deslumbrante de verde e vermelho dos pés de café. Hoje, para onde quer que se olhe veem-se canaviais, a monocultura desse verde angustiante domina. Eu morava num lugar chamado Matão, bairro rural do município de Dois Córregos, SP.  Eram várias fazendas de café prósperas, depois veio o “progresso”. Então, não foram o governo federal e o governo estadual os culpados pela falência do ecossistema. Foram, também. Mas vêm antes a ganância, o lucro desenfreado, os grandes empreendedores do comércio e da indústria. Essa falha no sistema vem de há muito tempo. Vem desse “progresso”, que precisa ser colocado entre aspas. E o nome “sistema” tem uma conotação negativa.

Lázaro era o “Poeta do Cerrado”. Morreu defendendo o cerrado, que a sanha do lucro destruiu. A sanha do lucro confunde-se com o sistema. Lázaro foi destruído por essa sanha infernal, sem nada de humano. Foi assassinado pelo progresso, tão necessário, mas tão destruidor em sua sanha de devorar mais e mais. “O que eu tenho com isso?”, diria um outro. Nós todos temos tudo a ver com isso. Nós somos responsáveis, nós somos culpados pela destruição do meio ambiente, que é a destruição do próprio homem. Essa política de tirar o corpo fora é criminosa. Principalmente quando se tem o poder de frear essa destruição, refrear ao menos. Essa política de tapar o sol com a peneira é igualmente velha e criminosa. A pandemia que mata milhares de pessoas, o fogo que destrói milhares de árvores. A ganância que rouba milhares de árvores, que elimina o ar que respiramos. Tantos pobres pelo caminho, tantas pessoas morrendo de fome. “Mas não fui eu.” Os pobres sempre existiram e sempre existirão. Querem que eu seja culpado de todos os males do mundo? De todos não, mas é no mínimo indecente tirar o corpo fora. É falta de humanidade demais. Essa sanha destruidora do progresso é no mínimo assassina. Lázaro que o diga. Como sobreviver? Como viver? É como se Lázaro entregasse os pontos. Perdi.

Lázaro foi um caipira que se negou a abdicar da sua condição de caipira. O seu primeiro livro foi “O caipira que leu Nietzsche”. Ele deve ter penado para escrever o nome desse filósofo. Ele penou para ler muita filosofia e poesia. Sem abdicar da sua posição de caipira. Lázaro levou ao extremo a sua autenticidade. Foi caipira até fora d’água, até fora do seu elemento. Não se importava de aprender pontuação ou ortografia, tinha muito mais do que isso: a autenticidade do ser caipira. O seu último livro chamou-se “Entre eucaliptos e canaviais ouviu-se o grito do último lobo do cerrado paulista”. É um título longo, mas necessário como o ar que os eucaliptos e canaviais e a cada ano mais e mais o fogo vêm tirando da nossa terra. Vêm exaurindo a nossa terra. Bauru foi grande produtora de café, hoje tem terra exaurida, que sufoca, já nem pode mais gritar por socorro. O livro mais conhecido do alemão e humanista Hermann Hesse é “O lobo da estepe”. Nós não temos estepe aqui, nós temos cerrado. Quem mais vai encampar essa luta? Quem mais vai querer lutar até o último suspiro? Quem vai abraçar essa luta inglória? Lázaro foi talvez o último humanista. O seu livro poderia chamar-se “O último lobo do cerrado”. Lázaro foi o último lobo do cerrado.

Não teve tempo de ver o livro pronto. Com capa dura, amarronzada, perdendo a cor como a terra. Traz a imagem de um lobo guará, o lobo do cerrado, em extinção como o próprio cerrado. Mas é a imagem do lobo guará da nota de dois mil reais. Põe-se a foto de um personagem morto numa cédula de dinheiro, como uma homenagem a esse personagem. Morto. Quer dizer: mataram o lobo do cerrado. Não me lembrem que outros animais já foram homenageados. Porque também já foram condenados.

A apresentação do livro foi muito bem planejada. As primeiras páginas com algumas patas de lobo guará marcando território. Ao final do livro vão clareando até desaparecer, como desapareceu o território do lobo guará. Observaram como os animais estão invadindo as cidades? Errado. Nós que invadimos o seu território.

O livro apresenta poemas equilibrados cantando a beleza do cerrado, depois vai perdendo esse equilíbrio, até se apresentar em forma de prosa, e por fim em forma de pequenos poemas que vão se extinguindo como o cerrado já se extinguiu. Lázaro dialoga com os maiores poetas, um Manoel de Barros ou um Drummond. De Manoel de Barros, a linguagem no estado mais puro, sem a gramática ou outros ademanes que enfeitam e enfeiam a língua. De Drummond justamente o “Lobo José”. Está mexendo comigo, que sou José. Apesar do poema de Drummond, é um poema lindo. Lembrando bem o ritmo do “José” de Drummond. “E agora, guará?/ O cerrado acabou.” Poderia ser o fim do poema: “O cerrado acabou”. Mas o poema precisa soltar o seu grito de protesto. E termina mais forte ainda: “E agora guará, pra onde você vai?/ E agora guará? Pra onde é que eu vou?”

O Facebook costuma ser meio cego. Quando aparece uma foto minha, logo sugere a marcação: “Lázaro Carneiro”. A mesma cabeça branca nos dois, só isso. Fomos confrades na Academia Bauruense de Letras, que perdeu um de seus maiores nomes. Já comentaram que nós dois falamos do cerrado, somos os poetas defensores do cerrado. Quisera eu. Já fui acusado de imitar Manoel de Barros, talvez quando a minha poesia tinha mais natureza do que ideias sobre o tempo, o efêmero das coisas. Mas não sou defensor do cerrado. Apesar de ter nascido no mato, eu fui embora, “vivi, estudei, amei e até cri”, como disse Fernando Pessoa e eu repito, mas sou quase ignorante das coisas da terra. Lázaro leva esse estandarte com ele. Salve, Lázaro. Salve, último lobo do cerrado. 

                                                               **** 

Em tempo: - O meu texto com maior número de leituras neste blog, quase 14 mil acessos, foi justamente "O lobo guará" (do "Livro dos bichos", prêmio Jorge de Lima, da UBE - Rio, 2011). Vou deixá-lo aqui como homenagem ao meu amigo Lázaro. 


O LOBO GUARÁ

 

 

O lobo guará me olha de soslaio,

disfarça, com os olhos afogueados.

Estranha o medo humano em minha face

e se embrenha entre as pedras da Canastra.

 

O lobo marcha, alerta, no cerrado.

É senhor deste mundo, uiva, anuncia.

É sua a solidão da noite escura

marcada por seu cheiro e por seu uivo.

 

Quem vê o lobo fica sem palavras

pelo inaudito viso: tanta força,

beleza e astúcia nele conjugadas.

Saem chispas de fogo de seus olhos.

 

Quem sou ou serei para que me enfrente?

Por que enfrentar uma fraqueza de homem?

Quem tem, como ele, o dorso de um cavalo?

Quem tem, como ele, a força do leão?

 

 


Crônica de uma morte anunciada

 

Crônica de uma morte anunciada


            Gabriel Garcia Marques escreveu um romance chamado “Crônica de uma morte anunciada”. Logo se deve ter pensado: a morte é anunciada, então os leitores já sabem o que vai acontecer. Perdeu a graça! Mas todos sabiam que Garcia Marques era um narrador exímio, o que saía da pena dele valia a pena, era uma obra-prima. Então lemos na certeza de que iríamos nos encantar com os antecedentes e talvez também com os fatos posteriores dessa morte anunciada. E por que anunciada? Quais as circunstâncias? Os personagens?

É muita ousadia minha querer escrever também uma crônica de uma morte anunciada. Mas acontece que eu escrevi, há seis anos, sem saber que estava escrevendo essa crônica. No dia 13 de junho de 2015, eu e minha mulher fomos chamados ao Pronto Socorro Central de Bauru. Chegando lá, às 8 horas e pouco da manhã, fomos logo encaminhados para uma conversa com uma assistente social, que tentou nos preparar para uma notícia extrema. Depois veio um médico, depois outro, os dois tentaram também nos preparar para essa notícia final. Não ficamos convencidos, eu não fiquei convencido. Nem quando vimos o nosso filho, o Aran, com uma cabeça enorme, irreconhecível, resultado da pancada contra um muro. “Parecia o ‘Homem elefante’”, diz a minha mulher. Inexplicável como pode ter batido tão forte. No início todos pensaram que teria sido atropelado por um caminhão ou um ônibus. 

Eu não desisti nem por um minuto. Está vivo, vai continuar vivo. Minha mulher achou necessário chamar o padre para dar a Extrema Unção (hoje chamada Unção dos Enfermos, porque pode fortalecer o doente e ajudá-lo partir para Deus ou a vencer a doença). Ligou para a nossa paróquia e o Padre Gustavo logo chegou ao Pronto Socorro. Olhou o Aran compadecido, assustado, e deu-lhe os Santos Óleos. Depois aconteceu o que vai narrado abaixo, dia a dia. 

13-6-2015 – Queridos amigos, – O Aran sofreu um acidente de bicicleta, tem fraturas na face, costelas, na cervical e na lombar (mas sem comprometimento de medula), além de um trauma craniano. Está sedado, na UTI. Está estável. Esperamos que o estado evolua satisfatoriamente. Agradecemos o apoio de todos e contamos com suas orações. Quando tiver novidades darei mais notícias.

14-6-2015 – Estivemos hoje na UTI. O Aran fez nova tomografia, que não acusou nenhuma lesão no cérebro. Está sem febre, mais sossegado. Continua sedado. O médico disse que a situação ainda é grave, e é preciso mais tempo para outras respostas.  Quando seu estado estiver melhor, vai passar por cirurgia da face. Obrigado a todos os amigos, continuamos contando com suas orações.

15-6-2015 – Não temos muitas mudanças. Ele continua sedado, sem febre. O médico confirmou as costelas quebradas mas disse que o pulmão não foi afetado. Continuam aguardando a diminuição do edema para poder fazer a cirurgia do rosto. Hoje, quando a mãe cantava pra ele, piscou forte e movimentou a mão. Agradecemos o carinho que temos recebido de todos. Continuem a orar por ele.

16-06-2015, 20h20 – Muito bom saber que o Aran tem tantos e tão bons amigos. Aqui estão as últimas notícias que estão pedindo. Ele está se recuperando devagar, dentro do que se esperava. Assinei hoje autorização para uma traqueotomia. É procedimento comum. Menos incômodo do que respirar pelo tubo como até agora e tem menos risco de infecção. Vai ser tirada a sedação aos poucos, para ele não estranhar. E também para evitar movimentos do pescoço, porque tem uma fratura na vértebra cervical, e do rosto, que tem uma fratura no maxilar inferior e em alguns ossinhos perto do olho direito. Segunda-feira deve fazer a cirurgia do rosto. Então, quer dizer que está em fase de boa recuperação. Fez nova tomografia hoje, não tem nenhuma lesão cerebral mesmo. Novidade também que foi acidente de bicicleta, vimos num vídeo do local em que ele caiu, não foi atropelado como julgávamos pela extensão dos ferimentos. Está ficando malcriado. A fisioterapeuta contou que quase tomou um murro dele. Contou como coisa boa: reflexos e movimentos normais. Continuem com suas orações e sua torcida que estão nos ajudando muito.

17-06-15 – 18h55 – Atendendo a pedidos, relato que o Aran vai se restabelecendo devagar, conforme o previsto. Está tudo nos conformes. Hoje fez a traqueotomia, ficou com aparência melhor, está respirando sossegado, sem febre, com batimentos normais. Está agitado, mas isso é bom sinal: está reagindo. Agora é esperar. Muito obrigado a todos. Continuem com suas orações.

18-6-15 – As coisas devagar vão se encaminhando. Hoje conversamos bastante com ele. Ele respondeu, jogou beijo, xingou. Ainda está muito confuso. Está muito agitado. Quer que desamarrem as mãos e os pés. Hoje à tarde na hora da visita entrei primeiro e a enfermeira acabou soltando uma das mãos dele, mas numa bobeada ele conseguiu tirar o tubo. Com a mãe tem que ficar amarrado, pois ela não vai conseguir segurá-lo. A cirurgia buco-facial continua marcada para segunda-feira. Obrigada a todos pelo apoio e orações. Continuem, isso nos fortalece. (Relato feito pela mãe.)

20-6-15 – O Aran vai reagindo bem, cada vez melhor. O processo é vagaroso. Precisamos ter muita paciência. Ele está entendendo bem as coisas. Colabora com as enfermeiras. Só pede muito para ir para casa. Ninguém gosta de hospital. Hoje está mais sossegado. De manhã se comunicou bastante com as enfermeiras. Quando a mãe chegou, estava cansado. Falou um pouquinho com ela (só com os lábios), enquanto massageava, e logo adormeceu. Está bem medicado, para não sentir dor. A medicação dá sono. Está sendo muito bem cuidado lá. O pessoal da UTI é muito atencioso e carinhoso. A cirurgia está mesmo marcada para segunda-feira, de manhã. Nós agradecemos muito o carinho de cada um de vocês.

22-6-15 – "A cirurgia foi um sucesso!", disse a médica, Dra. Patrícia, que o operou.

23-6-15 – Como eu disse, a cirurgia do Aran foi uma beleza. Depois de uma agonia de mais de cinco horas de espera, a Dra. Patrícia nos deu a notícia de que tudo havia corrido muito bem. A cirurgia foi feita internamente, sem cortes visíveis no rosto.  Hoje ele foi para a unidade semi-intensiva. Não deve demorar para ir para o quarto.  Está consciente, respira bem, comunica-se. Obrigado pelo apoio de todos com a amizade, com suas orações e torcida pelo Aran.

30-6-15 – Vamos que vamos. O Aran está cada dia um pouquinho melhor.

Já contei que está falando, e falando bem. Começou a se alimentar via oral, treinando para tirar o alimento via sonda. Fecharam a tráqueo, preparando-se para tirá-la de vez. Começa a se movimentar, amanhã vai levantar para tomar banho de chuveiro.

Cada mínimo passo é um grande progresso. Estamos exultantes. Obrigado a todos.

2 de julho de 2015 às 22h01 – Estamos felizes da vida. Adivinhem o que aconteceu! O Aran teve alta hoje e está aqui em casa. Sossegadinho, feliz, paparicado. 

A fé remove montanhas. Agradeço a todos. Viva a vida!

Depois disso o Aran se restabeleceu completamente, ou quase, pelo menos ficou aparentemente perfeito. Precisou de muitos cuidados, hidroterapia, carinho. Nasceu de novo.

Aprendeu a valorizar a vida.