sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O BUKOWSKI DE BAURU


 

 

O Bukowski de Bauru

 

Abro a primeira página do livro do Cláudio Domingues, “Memórias de Blimmer”, e a primeira frase que leio, do prefácio, é “O garçom do Universo”. Lembrei-me do poema de Oswald de Andrade “Venceu o sistema de Babilônia/ e o garção de costeleta.” O sistema de Babilônia é o mundo poemático que Cláudio inaugura. É o fim da poesia bem comportada.

Para contrabalançar Oswald lança aquele “garção de costeleta”. Uma tentativa de abrasileirar a palavra francesa, não só de Oswald, Machado de Assis já usava “garção”. Esse “garção de costeleta” soa tão antigo, tão fora de época. Enquanto “o sistema de Babilônia” é a descrição perfeita dos poemas do Cláudio, não tanto em si, mas de como ele vê o mundo, confuso, degenerado, fora dos trilhos, da ordem.

Ao ler uns poucos poemas me veio de pronto na cabeça: Charles Bukowski. Isso é a cara do Bukowski, pensei. Fui reler alguns poemas de Bukowski e não vi nada de Cláudio Domingues. Tem a revolta contra o mundo capitalista sujo, é a mesma visão conturbada. Mas a poesia de Bukowski surpreendentemente é muito equilibrada diante dos poemas do Cláudio. Como se Cláudio Domingues tivesse um mundo mais selvagem pela frente para desbravar.

Tenho que convir que não errei de todo. O mundo perturbado de Cláudio Domingues lembra o mundo de Charles Bukowski. Os dois são, de certa forma, da mesma família. Os dois combatem esta sociedade desajustada em que vivemos. Desajustada para eles, mas quem poderá dizer, em sã consciência, que estão errados? A fraternidade existe de fato? A empatia de um ser humano pelo outro é um fato? 

Parece que estou purificando demais a imagem de Cláudio. Vamos dar uma olhada rápida nos seus poemas: “Eu tive de dizer adeus dentro de um cubículo escuro”, é o título de um poema, e é forte como um poema, mais forte que o poema correspondente em si. Como “Os lampiões iluminam as batatas cravadas na terra”. Que lindo isso. E com a minha cabeça meio torta que me leva a ler “baratas”, fico com duas imagens contundentes, a minha, mais à Clarice Lispector, e a dele, mais pura.

Desde o primeiro poema, somos assaltados por títulos assim contundentes. Até mais contundentes que os poemas. “Luzes mais, luzes menos, os artistas serão descobertos pela polícia”. Querem mais pureza? “Trate de me emprestar seus olhos.” Ou: “O corvo é um bom companheiro!” Ou ainda: “Vejo pirâmides por cima das grades”. Talvez: “O endereço do menino gavião”. Ou este título mais longo que muitos poemas: “Essa reunião está prestes a acontecer simultaneamente dentro da abstração de meio milhão de corações isolados”. Não é mais um do mesmo. Podem ter certeza: estamos diante de um poeta nada convencional.   

 

  

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O Centenário da Semana de Arte Moderna


 O 2º à esquerda, acima, Manuel Bandeira, ao lado Mario de Andrade, à frente em primeiro plano Oswald de Andrade, e os principais modernistas de primeira hora:

 

 

       O Centenário da Semana de Arte Moderna  

 

A Semana de Arte Moderna foi essencial para a minha formação como escritor. Quando eu tinha os meus 17 anos de idade fiquei sabendo dos principais escritores modernistas. Li e reli as cartas de Mario de Andrade a Manuel Bandeira (as cartas de Bandeira a Mario só foram publicadas bem mais tarde). Foram uma verdadeira oficina de poesia para mim. Aprendi como um poema deve ser pensado criticamente, não basta apenas escrevê-lo.

As diretrizes do Modernismo expostas na Semana de 22 foram: liberdade de expressão, experimentações estéticas; busca por uma identidade nacional: valorização do regionalismo; temáticas próximas ao cotidiano da população; negação dos padrões e estéticas anteriores; uso de ironia e linguagem coloquial vulgar; aproximação de vanguardas europeias, como cubismo, futurismo, dadaísmo, etc. Eram as diretrizes que eu queria para a minha obra.

Os integrantes da Semana de Arte Moderna foram Mario de Andrade e Oswald de Andrade, Paulo Prado e Graça Aranha, Anita Malfatti, Victor Brecheret, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Villa Lobos, Di Cavalcanti e outros. Sim, havia gente mais velha como um Graça Aranha, autor de um romance famoso, que rompeu com a Academia Brasileira de Letras, porque ela não aceitava as ideias novas. Manuel Bandeira não quis participar porque estava apegado às formas antigas, mas o seu poema “Os Sapos”, uma crítica ao Parnasianismo, foi lido – e ovacionado.

O Rio de Janeiro sempre esteve mais aberto ao novo, São Paulo estava apegado ao passado, por isso a Semana aconteceu em São Paulo, que tinha mais necessidade de se modernizar. O acontecimento foi noticiado nos jornais do Rio, que eram lidos em todo o Brasil, e assim foi o impulso para o Brasil todo se modernizar.

A antologia, “Poesia Moderna”, organizada por Péricles Eugênio da Silva Ramos, em 1967, foi para mim por muito tempo como uma Bíblia. Ali estão os principais poetas do Modernismo Brasileiro, da 1ª, 2ª e 3ª gerações. Há poetas essenciais da nossa literatura, alguns esquecidos como Raul Bopp e Dantas Motta, dois poetas imensos. Há Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, com as coisas simples da vida, com imagens concretas como matéria de poesia. Há Oswald de Andrade com seus poemas-minuto e João Cabral de Melo Neto com sua poesia elaboradíssima. Há o Concretismo e a Poesia Praxis, ainda novos. É um verdadeiro mapa da poesia brasileira.

A Semana de Arte Moderna aconteceu em três dias: 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Agora é o seu Centenário, que deveria ser muito mais celebrado. A arte no Brasil nunca mais foi a mesma depois da Semana. Foi como se de uma hora para a outra o Brasil tivesse se modernizado. O Brasil não é o mesmo depois da Semana de Arte Moderna.

 

 

 


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A árvore da infância


 

A árvore da infância

 

O pasto do boi bravo e a cerca de arame farpado que rasgou a perna do menino. A vaca Moela e o bezerro Bito babujam o sonho sonhado da infância até agora. O ribeirão não tinha peixes, tinha lágrimas na areia e nos espinhos do barranco, onde um pé de cabeça-de-negro se dependurava. A morte sorria como uma orquídea no alto de um jacarandá. A esmeralda brilhava numa pétala de sol.

No fundo do poço, a minha face – degolada pela guilhotina do espelho do tempo, a minha face vai e vem, vem e vai continuamente como um pêndulo sem fim. Os cavalos, no alto das patas traseiras, relinchavam. Traziam o sol nas patas e relinchavam. O monjolo marcava o tempo na água, o moinho moía a farinha e os galos. O canto dos pássaros bordava o dia. O arado tombava a carne da terra, as sementes sorriam prenunciando a flor e a espiga.

A noite me embalava na copa da figueira, longe os latidos dos cães loucos (o lobisomem ao pé da porteira). Eu me aconchegava no seio da lua, como no embalo de uma rede, e sonhava (um sonho que vem até agora). Os cabelos do menino cresciam sob a relva, o menino enterrado com as formigas. Os grilos brigavam com os vaga-lumes entre os coqueiros. As estrelas caíam com o sereno. O leite da madrugada era doce como a vaca Moela, o bezerro Bito mamava com sofreguidão (a Moela e o Bito, eu me dizia, sabem o meu nome).

O tempo escorre dos cabelos do meu avô (que morreu com noventa e dois anos de idade,  depois de muitos relógios quebrados). Um minuto basta para acariciar o cachorro ou para morrer – e continuar, no tempo, a mão no pelo do cachorro, na morte prolongando a vida. Abertas as comportas das águas do sol, o pasto transborda de luz. Eu tive uma égua, eu tive uma vaca e um bezerro – tombaram da árvore dos dias. Na roseira do êxtase, um pássaro cantava. O mel inundava o pomar tranquilo. Eu sonhava. No quarto, na varanda, no alto do telhado eu sonhava.

Da janela eu vejo: pombos caem do céu. A infância era azul, sem lápides. Os guizos da cascavel me encantavam. Nos ladrilhos quadriculados da varanda os soldadinhos de chumbo marchavam (eram inocentes as guerras de outrora: ninguém morria, ninguém matava). No jardim os gerânios vermelhos dançavam, os copos-de-leite cochilavam. Os sabiás empurram as raízes da paisagem para agora. Meu sonho navega no mesmo barco, nos canteiros de sombra.

Na cozinha os tachos de doce ferviam, impregnam o meu sonho, tão açúcar. A faca da morte decepou a cabeça do carneiro sobre o riacho tranquilo. Esta campa é de ninguém e sangra nas ranhuras do mármore. Quem pisou na palavra? Era virgem, porejava leite e orvalho, quem pisou – para nunca mais? O mundo caiu da figueira, da casa, do poço abandonado. Para onde quer que eu olhe é morte e a infância se me escapa por entre os dedos.

Os meus olhos desmoronam com os telhados, as teias de aranha, os morcegos e as raposas. Os meus irmãos voltaram e fazem um barulho enorme com o seu silêncio de gente grande. A estrada se esfarelou no horizonte com as nuvens e as fogueiras do anoitecer. As formigas levaram as folhas das roseiras para nunca mais. Éramos selvagens e inocentes como bichos tristes no escuro.

Eu quero o verde, o verde, o verde subindo com toda força para o alto dos galhos da figueira. Eu quero o sol. Eu quero o azul do céu. Eu quero subir a árvore do tempo, na montanha em chamas da infância eterna.

As escadarias apodreceram, a minha árvore é sempre verde. Acendo a fogueira na casa desmoronada com as pedras de fogo dos meus olhos. Os olhos do meu pai estão nos meus olhos, os meus olhos estão nos olhos do meu filho. Os olhos do bezerro Bito ainda mugem no pasto. O fogo queima a madeira, que estrala, rubra, no eterno.