terça-feira, 26 de abril de 2022

Sirga Alta

 


Sirga Alta

 

 

Era o lugar onde Deus repousava.

Ao crepúsculo, recebia as mensagens

dos mortais perdidos no espelho da dor.

As ondas se quebravam

nas grandes pedras de atalaia.

Um farol diminuto

sob a treva enorme.

Nesse lugar,

Deus dormia à noite

guardado por nuvens negras.

Nós não dormíamos,

pobres,

no fundo do abismo.




quinta-feira, 7 de abril de 2022

É preciso ter um grande assunto

 


"O que é escrito sem esforço em geral é lido sem prazer." Samuel Johnson

Não foi só João Cabral que não dava valor ao que era feito sem esforço. Não porque é lido sem prazer, mas como um parâmetro mesmo do valor do texto.

Tenho pensado no caso ultimamente. Ou mais que ultimamente – sempre, no meu processo de criação. Se está fácil criar um tipo de texto, é como um alerta de que devo procurar um formato diferente, um tema diferente, um assunto diferente.

Como os temas ou assuntos nunca abandonam um autor, sinto necessidade de uma forma, um tipo de abordagem, uma voz (ou tom de voz). Exijo que um texto me desafie.

"Se queres fazer um livro poderoso, deves escolher um tema poderoso." Dizia Hermann Melville. Moby Dick foi um tema poderoso. Interessante que os contemporâneos de Melville não reconheceram que ele tinha criado uma obra poderosa. Preferiam os folhetos de segunda que ele escrevia antes.

Nem todos de segunda, como a formidável fábula do escrivão Bartleby.

Encontrei poucos temas poderosos na minha vida. Ou assuntos, é melhor chamá-los de assuntos. Às vezes esses assuntos se confundem com uma linguagem. Talvez seja o caso de Machado de Assis. Os seus grandes romances e contos desenvolvem grandes assuntos subordinados a uma linguagem específica.

Sigo o método. É preciso um grande assunto. É preciso trabalhar com garra esse assunto. É preciso criar uma linguagem para tratar esse assunto.

Desconfio se a criação estiver saindo com facilidade. Não será criação. O que é fácil todos podem fazer. A criação é singular. Quero dizer, o ato de criar é singular. É preciso ser único para atingir o múltiplo.

 

 

 

domingo, 3 de abril de 2022

Adeus, Lygia

 


Adeus, Lygia

 

Disseram que Lygia Fagundes Telles morreu. Não vale. Tanto boco-moco para morrer e a dona Morte leva a Lygia.

Eu era leitor eventual de Lygia Fagundes Telles. Como todo mundo, talvez. Aí disseram que ela vinha fazer uma palestra em Bauru, no Colégio São José. Eu lecionava em Dois Córregos na época, 1971. Fui vê-la. O seu conto “Antes do baile verde” tinha sido premiado em Cannes. A popularidade de Lygia aumentava.

Começou dizendo que o escritor tem a obrigação de saber escrever, não de falar em público. Logo demonstrou que não precisava dessa inibição ou dessa modéstia. Nunca vi ninguém falar de sua criação como ela. Dava para sentir o verde escorrendo pelos dedos de Lygia. O seu conto tomou vida em suas palavras. Aquele conto não era apenas uma obra de ficção. Tanta vida, e a dor, a perplexidade por trás.

Eu me apaixonei por aquele sorriso simpático dessa escritora extraordinária.  

Vinte anos depois eu estava participando do Congresso de Literatura Brasileira. Eu estava ali para receber o prêmio da V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, isso justificava estar ao lado dos principais nomes da literatura brasileira, desde um Millôr Fernandes, um José J. Veiga, um Ledo Ivo, um João Antônio, um Luiz Vilela, uma Rachel de Queiroz, e Nélida Piñon, sempre protegendo os mais jovens como eu, ou os mais frágeis como Lygia Fagundes Telles.

Lygia era de uma fragilidade suave, amorosa. Você a via e sentia vontade de cuidar dela, de amá-la.

Um dia eu e um grupo de amigos tomamos uma cerveja a mais no intervalo para o almoço e não encontramos lugar no imenso auditório do Centro de Convenções Rebouças. Sem problemas, sentamos no chão, no corredor. Eu me sentei, por acaso, ao lado da poltrona de Lygia Fagundes Telles. Ela me cumprimentou com um sorriso cúmplice. Era como se estivesse me recebendo no clube fechado dos escritores. Como se eu fosse um deles. A certa altura, Lygia me estendeu uma latinha de pastilhas Valda pedindo: “Abre pra mim.” Essa simplicidade me levou para as alturas.

Os seus temas me conquistaram de uma vez por todas. O amor e a morte, a loucura, a solidão, o pasmo do homem diante do destino implacável. Salve, Lygia. Você abriu esse mundo para mim.