sexta-feira, 29 de outubro de 2021

A cabra e os Manuscritos do Mar Morto

 

                                                                                                              Cabra - Picasso


A cabra e os Manuscritos do Mar Morto

 

Um jovem árabe estava pastorando as suas cabras nos montes de Khirbet Qumran, localidade na margem norte do Mar Morto, na Cisjordânia. Muhammed Edh-Dhib, o nosso beduíno, sentiu falta de uma cabra e foi procurá-la. As cabras sobem pelas pedras, de monte em monte, a nossa cabra estava no seu elemento. Muhammed ouviu um barulho e viu um buraco entre as pedras: jogou uma pedra e ficou ouvindo o eco ou, talvez, a sua cabra. Ouviu barulho de cerâmica quebrada.

No dia seguinte, contou a um primo e foram juntos procurar a cabra na caverna escondida. Se tinha até cerâmica, deveria haver uma caverna. Encontraram várias jarras de barro com pergaminhos guardados ou escondidos dentro. Pegaram alguns pergaminhos e levaram para vender na cidade. Assim começa a história dos Manuscritos do Mar Morto. Isso foi em 1947, na época em que eu nasci.

Teriam sido escritos de dois a quatro séculos antes de Cristo até um século depois. A Bíblia hebraica foi organizada lá pelo ano 80 D. C. Era escrita a maior parte em hebraico, apenas alguns em aramaico e outros poucos em grego. Não havia textos do Novo Testamento. É provável que uma das cavernas tenha sido habitada pelos essênios, virtuosos ascetas judeus que viviam em uma comunidade ascética. Há teorias que João Batista e o próprio Jesus Cristo teriam sido educados no conhecimento bíblico pelos essênios.

Os pergaminhos encontrados em Khirbet Qumran comprovam a veracidade dos textos bíblicos. São os originais mais antigos da maior parte dos textos da Torá – os cinco livros do Pentatêuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Incluem ainda os livros de Isaías, comprovando que foram escritos por uma equipe, ao longo de mais de três séculos, além de Reis e Salmos, obras bíblicas não-canônicas (isto é, não autorizadas como verdadeiras) e um regulamento da comunidade que escreveu os manuscritos. Foram encontradas salas das mais diversas, nas cavernas, incluindo uma que os pesquisadores chamaram de scriptorium, com mesas, tinteiros e outros objetos usados para elaborar os pergaminhos.

Foram descobertas dezessete cavernas com documentos valiosíssimos. Muitos anos depois, em 2017, foi descoberta uma décima oitava caverna. Os primeiros documentos acabaram indo para os Estados Unidos, de onde o ainda recém-criado Estado de Israel tratou logo de adquirir. São os registros da história do seu povo, como viviam, como passaram a acreditar num Deus único, como foram dirigidos com sabedoria pelos juízes, pelos profetas, pelos reis, como foram escravizados, como voltaram sempre em busca da terra prometida, como lutaram por essa terra sempre com presença de Deus a seu lado. Um Deus guerreiro? Um Deus cruel? Um Deus misericordioso? Um Deus assassino? O povo de Deus é que mudou e viu Deus de uma forma ou outra.

Um dos mais influentes críticos literários e pensadores do nosso tempo, Edmund Wilson, autor de “Rumo à Estação Finlândia”, tem um livro sobre o assunto, chamado justamente “Os manuscritos do Mar Morto” (ambos publicados no Brasil pela Companhia das Letras). Outro é Harold Bloom, falecido recentemente, conhecido por ser o criador do “Cânone Ocidental”, e principalmente por antes ter chamado a atenção para “A angústia da influência” que acomete todos os criadores, que apesar de criadores, ou por isso mesmo, carregam um vasto lastro cultural nas costas. Os manuscritos do Mar Morto são uma descoberta importantíssima para o nosso pobre tempo.

Há uns dez anos escrevi um poema evocando os manuscritos do Mar Morto. Como não há novidades a serem ditas, foquei o meu poema na cabra responsável pela descoberta dos manuscritos. Além disso, os pergaminhos em que foram escritos eram feitos de pele de cabra. Por isso o meu louvor à cabra, meio em tom de brincadeira, no poema que fiz sobre a sua história heroica.

(O poema foi postado neste blog há dois dias.)

 


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

A CABRA DE KHIRBET QUMRAN

 



 A CABRA DE KHIRBET QUMRAN

 

 

O beduíno perseguiu a cabra até as grutas

das ruínas de mancha cinzenta

com suas jarras de barro

e seus pergaminhos de cabra.

 

A cabra é o animal mais apto para a poesia

e para a sabedoria.

 

A palavra de Deus nas patas da cabra

na pele da cabra

na língua da cabra.

 

A cabra devorou os manuscritos do Coélet

e do Sirac.

 

Sobre as pedras a cabra ainda rumina

o Livro da Revelação.

 

 

 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Um Nobel para o jornalismo

 

 

“Mentiras podem matar”, diz Maria Ressa, jornalista filipina, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, que completa: “Para o coronavírus, você deve ter uma abordagem que envolva toda a sociedade. Você não pode criar conteúdo divisionista, não pode tornar os fatos discutíveis. Você não pode manipular as pessoas.” Ressa não é a única, mas é a figura mais forte na resistência às fake news e ataques contra a mídia. Ela está afirmando que a luta contra os fake news é a luta pela democracia.

“O Nobel da Paz colocou luz em como os perigos para exercer nossa profissão, não apenas nas Filipinas, mas em todo o mundo, aumentaram”, afirmou Ressa.

O Prêmio Nobel da Paz de 2021 foi concedido aos jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov, “por seus esforços para salvaguardar a liberdade de expressão, que é uma pré-condição para a democracia e a paz duradoura”.

O presidente do Conselho do Nobel, Reiss-Anderson, disse que os premiados "são representantes de todos os jornalistas que defendem este ideal em um mundo em que a democracia e a liberdade de imprensa enfrentam condições cada vez mais adversas".

O porta-voz do governo filipino disse que estão muito felizes com o prêmio a uma filipina. Chegou a afirmar que existe liberdade de imprensa em seu país, que a prova é o prêmio. Mas não deixou de lembrar que Maria Ressa ainda tem processos a responder, chamando-a de “criminosa condenada” – quer dizer, o autoritarismo não tem cura.

Dmitry Muratov lembrou jornalistas que perderam a vida na mesma luta de procura da verdade, dedicando-lhes também o prêmio. Dmitri Mutarov é fundador do jornal Novaya Gazeta e dedicou o prêmio a seis de seus jornalistas, como Anna Politkovskaya, assassinados no cumprimento da missão. Diz que infelizmente não há um prêmio para os já falecidos.

O comitê norueguês afirmou que "O jornalismo baseado em fatos e a integridade profissional do 'Novaya Gazeta' o tornaram uma importante fonte de informações sobre aspectos censuráveis ​​da sociedade russa raramente mencionados por outros meios de comunicação". O governo Putin disse que Muratov trabalha de acordo com seus próprios ideais e que o jornalista é "corajoso e talentoso".

A liberdade de imprensa não é uma realidade universal. A perseguição aos jornalistas é.

Bem disse o comitê da Academia Real de Ciências da Suécia: “Ao mesmo tempo, eles representam todos os jornalistas que defendem esse ideal em um mundo em que a democracia e a liberdade de imprensa enfrentam condições cada vez mais adversas.”

Maria Ressa está mais próxima de nós e parece enfrentar problemas muito semelhantes. Compara o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, a Jair Bolsonaro. Os dois representam o autoritarismo. Duterte exibe um fuzil para o público, como se fosse essa a sua força.

É preciso lembrar que a liberdade de expressão é paradoxal. Fake news também são violações da liberdade de expressão. Os governos totalitários usam e abusam da liberdade de expressão para justificar seus fake news e ataques às instituições ou a pessoas que as representam.