sábado, 28 de fevereiro de 2009

12 pétalas

Foto: Sônia Brandão

AS PÉTALAS

As pétalas da rosa
são a rosa
queimando no fogo.


A MULHER

A mulher erguendo a mão
para a macieira
em chamas.


DEITADOS

Deitados sob a árvore
o amor nos chamava
da cascata de estrelas.


MORREMOS

Morremos com cada morto
que enterramos.


A POMBA CAI

A pomba cai do céu azul
sobre as línguas famintas
das pedras.


ABANDONO

Abandonei o meu corpo
na praia
olhando o mar.


O CÁLICE

Beberei do cálice
até a última gota.


UM EPITÁFIO

Palavra na pedra
o poema é um epitáfio.


SOL DE MOSTARDA

Ao sol de mostarda
corre o rio para o mar.


A POEIRA

A poeira se eleva
as cinzas do meu pai
caem no mar.


OS CAVALOS DO MAR

Os cavalos montam
as ondas do mar
nas praias do fim do mundo.


O OLHO

O olho no galho da roseira
alto, lúcido e belo
como uma rosa sangrando.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Nasce um poeta



Não me lembro, naturalmente, do primeiro livro que li. Mas o primeiro livro de poesia que li lembro bem: “Os Simples”, de Guerra Junqueiro. Foi quando descobri que o poeta era um cara de carne, osso e pescoço como a gente. E que a gente simples da roça, os bichos, as árvores, o ambiente da minha infância, enfim, podiam ser matéria de poesia. Portanto, se eu me esforçasse, se aprendesse as manhas, as técnicas do ofício, poderia também ser poeta.

Já quiseram me desqualificar essa lembrança, talvez num elogio: eu seria poeta de qualquer forma, encontrando-me com Guerra Junqueiro ou não. Talvez, mas para mim, se não foi essencial, foi tão bonito esse encontro que é como se fosse essencial.

Eu era seminarista em Rio do Oeste, SC, quando me caiu nas mãos um exemplar velhíssimo, que tinha todo o sabor de novidade do mundo. Nos livros escolares eu já lera poemas de Camões e Bocage, Bilac e Alphonsus de Guimaraens ou Cruz e Sousa: não eram gente, mas entidades algo abstratas. Guerra Junqueiro foi o primeiro poeta que eu conheci. Era um homem como o meu pai, o meu avô, os homens da roça que eu conheci.

Abra um livro e encontrarás um homem – nunca um adágio caiu tão bem. Abri “Os Simples” e foi uma iluminação. Eu descobri que a palavra tem mais poder do que dar nome, convencionalmente, às coisas. A palavra criava as coisas. Tinha o poder de criar o mundo.

Os poemas são órgãos ligados por artérias especiais ao poeta que os criou. São partes do poeta. O conjunto desses poemas, um livro, é o poeta. Posso estar exagerando, querendo assim pagar uma dívida a Guerra Junqueiro, mas é o que sinto, o que intuo, com força de verdade: somente o livro pode revelar o poeta, não poemas isolados, por melhores que sejam.

Continuarei esta crônica para falar um pouco mais de Guerra Junqueiro, para tentar explicar por que ele foi importante para mim, embora já tenha dado a resposta: porque no seu livro “Os Simples” encontrei um poeta, e descobri que o poeta é um homem.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Sem palavras

Foto: JCMBrandão

Caímos no exílio
sem palavras
nem outra paisagem.


PREGOS

Eu pregava pregos
como se não fosse
o meu caixão.


EMBRULHO

Adivinhou a cor do embrulho
e caiu em silêncio profundo.


A MORTA NA CAMA

A morta na cama
com lírios brancos nas mãos
e o eterno nos lábios.


A ETERNIDADE NAS UNHAS

Tinha a eternidade nas unhas
limpas do sangue
derramado.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Quarta-Feira de Cinzas


Altar da Igreja Matriz São Joaquim, de Igaraçu do Tietê, SP,
que frequentei na minha infância.


2Co 4, 7

Temos um tesouro
a excelência de Deus
nos vasos de barro.


A ESCADA DE JACÓ

Sobe a escada de Jacó
e luta contra o anjo,
luta contra Deus.

Homem, tua derrota
será tua vitória.

Tua hora é agora

e o teu túmulo,
o poema.


SENHOR, A NOITE É NOSSA

Senhor, a noite é nossa.
Teu corpo nos agasalha, Senhor.
Teu sangue nos alimenta.
Nós quebramos o espelho

E escorre sangue da tua imagem, Senhor.
As estrelas choram conosco.
Somos como camelos alongados na areia
Em busca da sua própria sombra.

Palavras são tudo que nos resta
Em nossa pobreza
E são secas como a pedra e a areia.

Senhor, tende piedade de nós.
Temos só o teu corpo
E o teu sangue, Senhor.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Cavalgada



A MENINA LOUCA

A menina louca
uiva para a lua cheia
no nevoeiro.


A CECÍLIA MEIRELES

Pastora de nuvens,
navegas no mar antigo
e no espelho lívido.


CAVALGADA

Além da linguagem,
a nuvem sacode a crina
e cavalga o poema.


FLOR DO LÁCIO

Lavrei a palavra
mamei nas tetas da língua
a Loba de Roma.




O boi e o cavalo
mantêm o mundo girando
na moenda do tempo.


ÁPICE

O mito da vida
chega ao fim
e nada se conclui.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

O Lavrador



O LAVRADOR

Lavro a palavra
com o arado
quebrando pedras.


PASCAL

O silêncio eterno
do abismo infinito
me alucina.


O CÉU

Toquei o céu
com as mãos nuas.
Sangraram.


IDEAL

O círculo perfeito
do pássaro
no abismo.


CONTRA

Contra mim mesmo,
amo a morte antes de tudo.
Depois a estrela do mar.


DOMICÍLIO

A morte será
o meu domicílio
enquanto viver.


MÉTODO

O poeta escreve
com estrelas, pedras, pássaros.
Não com palavras.


AS AFOGADAS

As filhas das estrelas
se afogaram
no mar.


O VASO

Um vaso de barro
o desenho de uma jovem
renasce das cinzas.


A LUA AZUL

A lua azul se levanta
sobre o pinheiro verde
e mergulha no lago.


O ARAME FARPADO

O arame farpado
entre o olhar e o nevoeiro
estrangula a paisagem.


A SEMPRE-VIVA

A sempre-viva
entre as pedras da Canastra
sorri ao sol.


POSE

Na terra molhada
do canteiro de buganvílias
a pomba posa para a foto.


O MORTO

Quem eu fui morreu.
Não sou um outro no espelho,
mas ninguém.


NADA

Não me sobrou nada.
Perdoá-los por quê?
Um morto não esquece.


RETORNO

Ainda retornarei
à mínima desordem
do mar.


ECLIPSE

Nas pétalas de magnólia
te exilas
em mito transmutada.


ELIPSE

A morte
separa a rosa da sombra
no abismo.



O Lavrador + 17 poemas à escolha do leitor.
21-02-09
Fotos: JCMBrandão

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O arco-íris



O arco-íris
atrás das grades
chora sobre a cidade.



_____

em alemão:
Der Regenbogen
hinter Gittern
weint über die Stadt.


e em Sérvio:

Kišna duga
iza rešetaka
plače iznad grada.


ou:

Кишна дуга
иза решетека
плаче изнад града.

por  Miroslav B. Dusanic




quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O teu silêncio

Foto: Brandão

O teu silêncio
Pousa em mim
Com todas as estrelas.

Como o teu silêncio
trouxe tanta luz?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Êxtase

Foto: Sônia Brandão

Arranquei os olhos
para a rosa.

Arranquei o coração
para a noite.

Entro em êxtase
com a rosa da noite.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Ninguém

Foto: Brandão

Tinha formigas na boca
Tinha cal nos olhos

Tinha o coração na avalanche
O gavião gritava na torre

As pedras despencavam na montanha
Os pinheiros se contorciam na encosta

Os oleiros suavam barro e sangue
A chuva devorava o desejo

As águas afogavam os cavalos
Os corpos das crianças no monturo

As árvores cobertas de cinza
A angústia no nevoeiro

A carne podre do abutre
No azul da alma de Deus o esquecimento.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A companheira de viagem



A morte é minha companheira de viagem
Para que eu não me esqueça da paisagem
Para que eu sinta a eternidade
Vamos de mãos dadas

Olha a árvore que passa
Olha a sombra na água
Olha as cinzas da rosa
A morte é minha companheira de viagem

O anjo se eleva ao céu na nuvem de fumaça
Sou a face de Deus generosa
Sou a criança com um pássaro na mão
E o pássaro vai voar, vai voar

O cavalo carrega o sol no lombo
Eu carrego a morte nos ombros
Ela me conhece e conversa comigo
A morte é minha companheira de viagem.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

O milagre

Gabriela Barreto Santos

A flor da cerejeira está brilhante.
Uma gota de orvalho se equilibra.

As abelhas voam, revoam.
O canário trina em sua flauta.

O barco na corrente dorme sossegado.
Um homem se aproxima com a bênção

do sol nos olhos: a manhã é um milagre.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A casa do lago



A casa do lago é um poema
refletido na água
com peixinhos na varanda
e arco-íris por todo lado.

A casa do lago navega
vai só até ali
na outra barranca
depois volta balançando feliz.

A casa do lago quieta
sob duas árvores floridas
de janelas abertas e floridas
espera por mim.

A casa do lago verde
sobre a água verde
com os seus pássaros verdes
canta para mim.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A coruja verde



Uma coruja verde está pousada
no aparador de minha sala de visitas.
Tem os olhos voltados para a direita e a esquerda,
mas sei que está me olhando.

É feita de uma madeira leve, a balsa.
Não sei por que a pintaram de verde,
mas foi uma feliz ideia:
imagino a coruja amanhecendo
como uma árvore.

A cor da sabedoria deveria ser o verde,
como uma árvore que vai florir
e voar com tanta claridade.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Eça e Machado



Josué Montello diz que há escritores de uma língua e escritores de uma literatura. O escritor de uma língua não pode ser transposto para outra sem ser desfigurado, tornando-se irreconhecível. Seria o caso de Eça de Queirós. Enquanto o escritor de uma literatura pode ser transposto para outra língua, como Machado de Assis. Justificando-se assim porque Machado se universaliza, e Eça não, porque as traduções o desfiguram.

Não penso assim. Para mim, Machado é escritor universal, expressa uma visão do mundo que é do Brasil, mas também da América Latina, dos Estados Unidos, da Europa. Eça de Queirós seria o escritor de Portugal, que retrata o sentir português do mundo. Daí a dificuldade de ser traduzido, sentido e apreciado fora de Portugal. Eça escreve para os portugueses, é escritor de uma pátria, ao contrário do apátrida Machado de Assis.

Não conheço as traduções de Eça e suas repercussões no exterior. Mas posso falar bem do nosso tão brasileiro Machado, que eu acabei de chamar de apátrida. Pois tinha um humor tão refinado, intelectualizado, feito de minúcias pegadas a pinça de um Swift, de um Sterne, de um Xavier de Maistre, de um Fielding, etc., e até de um Garrett tão português, que no Brasil tínhamos dificuldade de chamá-lo de brasileiro. Demorou, talvez tenha sido preciso até que estrangeiros viessem aqui estudá-lo, para descobrirmos o quanto brasileiro ele era, na essência, não nas aparências.

Não quero dizer que Eça de Queirós seja menos universal. Quero dizer que sinto Eça como muito português. Com páginas deliciosas, deliciosamente portuguesas. Para mim Eça é o escritor de uma pátria, ao contrário do que diz Josué Montello. Eça é bem português e a paisagem portuguesa mais que presente em tudo que ele escreve, a paisagem física ou humana. Machado e Eça, os dois fizeram muito pela língua portuguesa, pátria de ambos. Como do maranhense Josué Montello, que também fez muito pela língua portuguesa.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A eternidade e outros treze poemas



A ETERNIDADE

A eternidade na linha do horizonte.
A eternidade é a linha, no horizonte.


A TUA FACE

A tua face dividida
ao meio, no relógio.


A NOSSA MORADA

Muitas vezes saímos à janela,
muitas vezes saímos de casa,
viajamos, conhecemos, trabalhamos, sempre voltamos.
O esquecimento é a nossa morada.


ROSAS

Cortei uma braçada de rosas.
Amanhã cortarei outra braçada de rosas.
Sempre haverá novas rosas para cortar.
Enquanto eu existir, haverá rosas.


O AZUL DE DEUS

Eu beberei do azul de Deus todos os dias.
A pedra sangra, o relógio sangra, a rosa sangra,
os meus olhos caem por terra com os pássaros mortos.
Eu navego calmamente no mar azul de Deus.


O MEU CAVALO

O meu cavalo come na minha mão.
As minhas árvores e os meus pássaros cantam.
O meu universo está em ordem.
A terra espera as minhas raízes.


ESCREVO

Componho a face do tempo no espelho.
Sou uma pérola na concha e escrevo.
Bebo o vinho do olvido no mar e escrevo.


EU QUERO A ROSA

Eu quero a rosa.
A pedra na minha mão vai florescer.
Da palavra na minha mão a pedra vai florescer.


VELÓRIO

O último a sair
feche os olhos do morto.


ADEUS

Os mortos sempre acenam em despedida
aos que ficam.


SOLIDÃO

O homem é só como uma flor de pedra no deserto.


VERÃO

O pássaro carrega o verão nas asas
e no canto.


FÊNIX

A palavra renasce das próprias cinzas.


O CÂNTARO INEXTINGUÍVEL

Quem bebe da palavra pensa no cântaro
e em quem fez o cântaro inextinguível.

Fênix


A palavra renasce das próprias cinzas.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Numa fenda

Foto: Brandão

Numa fenda
entre as pedras do muro

uma rosa
e um pássaro esmagado.

O muro ruiu



                                                O muro ruiu.
                                                As pedras soterraram

                                                os olhos, a língua, as palavras.



O pêndulo

Contempla a estrela
em silêncio na montanha –

o pêndulo do universo
dizendo sim, não, sim, não

no deserto.

A palavra cai

A palavra cai
com sangue

na areia do relógio.

Credo

Semeei a semente para a morte.
Eu creio na ressurreição.

Gênese

Entre pedra e água,
a palavra.

A árvore cresce na água,
linguagem.

O pássaro voa da pedra,
o poema.

De mãos dadas

Caminhamos de mãos dadas na areia
da praia, em silêncio, sob as estrelas.

A nossa vigília amorosa se prolongava.
Olhei dentro da água dos teus olhos –

a minha alma pairava refletida.
Ao som do mar, sob o céu profundo,

as nossas almas se encontraram para sempre.

A prata dos carvalhos

O menino é levado para o muro sob a prata dos carvalhos.
É noite e as pétalas da lua caem das folhas lívidas.

Olhando o céu, o menino modula a palavra de sombra
com as ondas do mar no coração.

O menino e o mar

Era o tempo dos mortos.
O mar lançava a noite para a terra.

A praia era um grande cemitério,
os cadáveres de boca aberta à luz das estrelas.

As almas dançavam sob a copa das árvores.

Foi quando se ouviu o choro fraco de um menino.
Dentro de uma concha, como uma pérola negra,

um menino dizia que a vida, como o mar, sempre recomeçava.

Quebrei os relógios

Quebrei todos os relógios.

Em silêncio, na praia da ausência,
converso com os meus fantasmas.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Entre pedra e água (Arte poética de João Cabral de Melo Neto)

Foto: Marjorie Salu

1. Entre pedra e água, essa indolência
de mineral voltado para
dentro de si mesmo até quando
em intensidade pulsando;

que se pedra e água à roda-viva
emaranha alheios corpos,
eles corpos nada verão
do miolo desse ocluso pão;

que entre pedra e água, a indiferença
geométrica, lâmina fria
desvenda as coisas, os alheios
volumes, nunca o próprio seio;

assim entre pedra e água, a faca
corta o poema, bem ao meio
da frieza bem-humorada
da palavra, infecta de nada.


2. Essa a imagem, sempre de fora
que o dentro é só dela palavra
medida com precisão, cálculo
entre pedra e água, o mais agudo;

que a alta defesa da palavra
é carta geográfica para
não se orientar, severo enigma
entre pedra e água, inapreendida;

que é essa a matemática doma
do que indômito se faz, verbo
deserto, de mil fímbrias, lâmina
entre pedra e água, onde se escande

o poema numa fímbria exata
e contida como se o número
fosse o próprio timbre do canto
entre pedra e água, penetrante;

3. Se quando alfinetes penetrem
uma garganta, entre pedra e água
jorre o canto, nunca de espesso
sangue, mas sim de seu avesso;

que um alfinete ou outra seta
procura o canto entre pedra e água
por conhecê-lo aí vazio
de lágrimas ou outros cios;

que uma agulha busca somente
a natureza entre pedra e água,
a natureza sem vertigens
só dela agulha, impassível;

que esse estilete fere tanto
uma garganta, entre pedra e água
para saber-se imagem pura,
poema inciso em ponta de agulha.


4. A pedra doma a água, o seu ímpeto
mais voraz, resistindo até
que, subjugada, ela arrefeça
seus vórtices e pare, queda;

a água doma a pedra, polindo
as suas arestas até
que se volte sobre si mesma,
lisa, tal seda, pedra seda;

esse metódico trabalho,
água contida pela pedra,
tal a palavra, entre pedra e água
que se contém, em grave lavra;

geometria elementar,
o amaciar da pedra pela água,
tal o poeta, entre pedra e água,
esse engenheiro da palavra.


5. Entre pedra e água está o poema,
sem perder sua vegetal
natureza aquém de raízes
e além-ramada, em cicatrizes;

cicatrizes que mais se con-
densam, em sendo o próprio âmago
dele poema entre pedra e água
de todo excesso depurado;

depurado em fino alguidar
onde o que entre pedra e água seja
o mais puro ouro que se busca,
o verbo vivo, verbo-súmula;

súmula do que de mais livre
concentra-se numa palavra,
antes e depois, mesmo quando
de entre pedra e água findo o encanto.

(Em 1972, escrevi este exercício de admiração a João Cabral de Melo Neto. Contraria muito o poeta, eu pensava, e esqueci-o. Hoje não tenho tantos escrúpulos e mostro-o.)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A palavra do afogado

A palavra do afogado
é mais úmida que a do enforcado?

A palavra caiu

A palavra caiu
fora de casa, na noite.

Resta o silêncio
da imagem

como uma pedra
na mão.

A palavra dói

A palavra como uma pedra
ou uma flor

cega, dói
na bigorna.

A palavra e a imagem

A palavra não é a imagem.
Uma pedra é uma pedra

para o cego ou o vidente.

A palavra nos lábios

a palavra nos lábios
crestados

uma estrela cai
na cabeça

a pedra aberta
brilha

o silêncio da rosa
na água

A raiz

A raiz da árvore
sob a casa

tem o sangue do homem.

A realidade

A água suja escorre
das escadarias do mundo.

A noite brilha
com tanta realidade.

A terra da palavra

Sou feito de terra,
a palavra é terra.

A rosa floresce em mim
e na palavra.

A videira

O cálice por terra
o vinho revela

a videira.

As agulhas das pedras

As agulhas das pedras
no fundo da água

ferem até a sombra
ou a alma.

Com uma árvore na mão

Com uma árvore na mão
acaricio a tua face

em fogo.

O espinho da rosa

A rosa sangra
com o espinho
cravado na alma.

O perfume do verão

o perfume do verão
no abismo da memória

o abandono do teu corpo
na campânula da noite

O peso da pedra

A pedra caiu da montanha
leve como uma palavra
ou uma estrela.

O silêncio do mundo

O silêncio do mundo
como um poço.

Todas as palavras
se afogaram.

O silêncio

O silêncio do ouro
e a flor boiando no sangue.

O relógio quebrado
com a palavra.

O vento leva as cinzas.

Origem

A minha origem
na gaivota branca
sobre o mar.

Cálice

Os olhos no cálice
me olhavam com pavor.

Até quando a angústia
absoluta?

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O mar queima

O mar queima as rochas,
o sal arde.

Os atobás caminham de peito erguido
na areia escura da praia.

Estrelas brilham na água.

O eterno instaura-se no azul,
entre as nuvens.

Manchas de sombra
nos envolvem.

Um sino insiste: cintila, cintila.

O teu nome

Seguro nas mãos
o teu nome de ave.

Pulsa em silêncio
com toda a loucura

do mundo.

Do cântaro

Do cântaro saiu sangue
em lugar de água.

Ao longe barcos de flores
e um pássaro assassinado.

Um sino tange.

A pedra cai da montanha
em silêncio.

A noite dos violinos

A noite dos violinos e a dor
nos dedos crispados.
Quem decifrará o voo da gangrena
na pele do eterno?

A mulher pisa os cacos de vidro,
vai deixando um rastro de sangue pelo caminho.
A sarça ardente dos pulmões sopra uma língua de fogo.
A palavra cavalga um cavalo de luz.

As tetas da memória acesa
alimentam as crianças das veredas perdidas.
O meu sêmen fertiliza a terra.

O silêncio de Deus move as pedras.
Caminho no bosque dos eucaliptos
com uma tocha acesa nos olhos.

A moringa



Sob a moringa de barro
a mulher bebe água.

As árvores batem palmas
e cantam.

Tanta claridade



Tanta claridade no cristal
e o cego.

O brilho da água
na casa em ruínas.

Cães dilaceram os ossos
rosnando.

Os cacos do sol



os cacos do sol
no chão

a sombra dos cântaros
como uma árvore

O vento varre



O vento varre as palavras,
varre, varre, até o último
cisco das palavras.

A língua redemoinha.
Não há caminhos, mas
círculos, vórtices.

Uma fenda no abismo
e o sopro do cristal:
imagens, luz, imagens.

E cai a sombra
na árvore
da linguagem.

O pescador



O pescador lança a rede
no espaço das estrelas.
Os peixes brilham no escuro.

Na tua face



Na tua face
solitária

dança a sombra
de uma lágrima.

O perfume do jasmim



O perfume do jasmim
grita com todos os pássaros
nas pétalas do verão.

As palavras afogadas



As palavras afogadas
no mar.

As ondas erguem-se
com o sol.

Os peixes cantam
na luz
das espumas.

A água gera
nova linguagem.

À sombra da tua dor



À sombra da tua dor
ninguém, nada, ninguém.

Aqui jaz a semente
do silêncio.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

João 1, 18

Ninguém viu a face de Deus.

Eu vi a face do meu pai.
Ouvi a sua voz serena

ou o seu grito de trovão.
A sua voz criou o mundo.

Não vi a Deus, mas vi meu pai
e basta.

Sei que estou morrendo

Sei que estou morrendo
porque tenho um cheiro

de formiga
nas axilas

e a minha língua se quebra
em contato com a luz.

A aranha

O reflexo na janela
sob a chuva.

O silêncio da aranha
grudada na face

sufoca.

lívida língua

lívida língua
o pássaro do silêncio

com as asas
modula a palavra

do mundo

A gralha

cego

dói a luz na cara


uma lágrima cai

devagar


enquanto uma gralha canta

A eternidade na face

A eternidade na face
como uma pétala de rosa

sopra, sopra

acende um incêndio
com a pedra do crepúsculo.

Os passos da morte

Posso ouvir os passos da morte
seu cheiro de jasmim

o sangue escorrendo
na terra úmida.

Apenas as palavras
gravadas na pedra

ficarão.

Acariciar a rosa

Ninguém precisa acariciar a rosa
o incêndio efêmero da palavra.

Como se pudesse ouvir

Como se pudesse ouvir
o silêncio

do pássaro empalhado
no escuro.

As flores da língua

As flores da língua
na sombra do jardim

sob as cinzas
queimam ainda.

A língua da loucura

A língua da loucura
no mar da morte

contra os rochedos
suas flores de sal

eternas.

Um halo entre as palavras

Um halo entre as palavras
coa a luz do tempo

em silêncio.

Como dói o siêncio

Como dói o silêncio
das pálpebras do morto.

Depois da chuva

As baitacas gritam depois da chuva.
A luz de Deus ilumina a terra.

A foice da morte

A foice da morte
cortou-lhe a garganta.

Um gavião gritou de espanto
com a cor do sangue.