sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Definição de poesia

Poesia é a emoção depurada pela forma. Se me pedissem a minha definição de poesia, podia ser essa. Mas precisaria definir forma. Há uma confusão abrangente nesse termo, que se torna mais abrangente a cada dia que passa. O próprio Todorov, um dos papas do formalismo, parece rever suas posições: “não vejo como se poderia admirar uma forma se ela não participasse da construção de um sentido.” Diz que insistia na forma, no período áureo do formalismo, para incutir na cabeça das pessoas a importância da estrutura ou forma de um texto. Não excluía o sentido.

Quando digo que poesia é uma questão de forma, estou dizendo que é uma questão de linguagem. É redundância dizer, mas digo: linguagem formalmente considerada. A linguagem trabalhada. Que tem uma estrutura. Quando se trabalha a linguagem, cria-se a poesia. Não qualquer trabalho. Modela-se a linguagem para criar a imagem. Esse é o princípio da poesia. Depois há que se inserir a imagem num determinado campo. O poema é esse campo. Cria-se o poema quando se insere a imagem numa determinada estrutura. Portanto, mais que a poesia, o poema é uma questão de forma.

A linguagem, lembrando os rudimentos da linguística, compõe-se de significante e significado. É necessariamente portadora de sentido (como lembra Todorov). Falar em forma não é falar apenas no aspecto externo da linguagem. Se falo apenas em significante, não estou ainda falando em linguagem. Falar em forma é falar da roupagem da linguagem e do que essa roupagem cobre. Lembrando que a roupagem cobre, embeleza, e ao mesmo tempo dá sentido. O continente torna-se o conteúdo, e vice-versa.

Não há como se abordar a poesia de um âmbito puramente estético. Poesia é linguagem, e linguagem tem implicações políticas, sociais, religiosas, éticas... Linguagem inclui em si uma mundividência. A poesia, sendo linguagem, é uma mundividência. Ou cosmovisão. Prefiro o termo cosmovisão: tem muito maior amplitude.

Lembro-me de que eu definia poesia como uma forma que respira. Não contradiz o que eu disse aqui até agora. Reafirma. É ainda melhor definição: vai direto ao ponto. Se é uma forma que respira, não é uma forma fria. É uma forma com o homem dentro. Ou com o espírito, sinônimo de sopro, respiração, o que anima a poesia. Concluindo: a poesia é uma forma vivificada pelo espírito humano. É uma forma que respira.

O cinzel do silêncio

O cinzel do silêncio me talhou,
os nossos lábios nunca se tocaram.

Morte cósmica

A morte é a solidão cósmica,
o sangue do caos nos une.

Motivo

Descobri que vou morrer,
por isso te procurei.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Um anjo me fala

um anjo me fala

sem face
sem palavras

a fala é a claridade
da imagem

O tempo aberto

o tempo aberto
como um cadáver sobre a mesa

não digas nada
cala e escuta

contempla

o tempo não sangra mais
como um cadáver frio

O silêncio da pedra

o silêncio na pedra
na bengala
no cais agônico

na cal das palavras

um gavião voa de repente
instaura a claridade

o cinzel talha o silêncio
o sangue escorre da pedra ferida

Exultação

afogado no escuro
nenhum peixe

a noite me leva sobre
as casas da cidade

nenhuma estrela

os cascos dos cavalos
na praia

exultação

a língua me leva à origem
da minha face

Estilhaço

um estilhaço de luz
no lábios

no cristal da linguagem
o sol
e o sangue

Claridade

de olhos fechados
vejo a claridade

no âmago da rosa
a essência do sangue

uma árvore de luz
um peixe com sol

o mar desperta o azul
o céu mergulha na água

sou todo claridade

Além da memória

além da memória
os barcos frágeis da tarde

nas ondas
nas rochas do mar

e a minha língua na mão
na ponta dos dedos

o coração naufraga
com a água do crepúsculo

estou só como uma gaivota
na linha do horizonte

A língua no muro

a língua no muro
a palavra dói

pedras entre os dentes
e terra terra terra

é preciso quebrar a palavra nos dentes
para que floresça

A flor do pássaro

a flor do pássaro
o pão e a água

o corpo da mulher
aberto

na relva tranquila
como se voasse

A eternidade

a eternidade é uma gaivota
sobre o mar

um cântaro de sombra
um cão

a água parada
uma flor de luz

A esmeralda

a esmeralda brilha

estrela, cristal


as quilhas quebradas

da linguagem


a forma da pedra

na luz

A árvore agônica

o silêncio do pássaro

na árvore


afoga

estrangula a luz


é uma pedra que cai

no abismo


a árvore agônica

inexiste

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A flor de maracujá



a flor de maracujá
com a coroa de espinhos
e as cinco chagas de Cristo

tem o vermelho do sangue
com o roxo da paixão

é a imagem da beleza
doendo no corpo e na alma

Ruínas




as ruínas da casa
os teus lábios rachados
de dor

os teus olhos
saltam
das órbitas

caem
por
terra

o teu grito
contra as paredes
destroçadas

um pássaro morreu no ar
com o tiro
do teu grito

e pisávamos

de
ossos

entre
as
ruínas

A solidão do poeta

Dizem, e eu tenho repetido, que a poesia não é necessária. Mas é. A poesia é um sinal de que o homem está vivo. Mais: ajuda, e muito, o homem a viver. Leio na última revista “Isto É”, na crônica de Miguel Falabela: “Deveríamos todos ler um poema por dia. As escolas deveriam iniciar seus trabalhos com um poema antes da maratona de aulas. Faz bem ao coração.”

Todos os homens nascem condenados à solidão. Sempre falta algo que lhes preencha a alma. Sempre sobra um vazio interior. Pode haver aquele auto-suficiente, que se julga superior, frio e calculista, e acha não necessitar da poesia. Se nem esse vazio interior tem! Se nem interior tem! Pois, por isso mesmo, esse é que precisa mais da poesia. Mais do que para preencher o vazio que todos nós temos uma vez ou outra, quando nos confrontamos com nós mesmos. Para dar-lhe essa vida interior que lhe falta, para torná-lo humano.

Ledo Ivo diz que a poesia é a arte de fazer poemas, mas também uma visão do mundo, é existencial, reflete tudo que o homem sente e sonha. É experiência pessoal, intransferível. O trabalho do poeta é, portanto, enorme: transferir o intransferível. É espelhar com as suas imagens todos os anseios e sentimentos do homem, todo o mundo que a sua consciência cria, lá no fundo dessa consciência, no inconsciente, onde nem ele mesmo sabe que tais sonhos e alucinações existem.

O poeta português António Ramos Rosa disse que quem escreve nunca está só na sua solidão de asceta. Comunica-se com a solidão dos outros homens. Preenche-as. Torna a alma desses outros homens mais pura, com a ascese das suas imagens. Por isso disse ainda que o poema é um arbusto que não cessa de tremer. Eu diria mais: que o poema é a sarça ardente, porque é animado pelo sopro de Deus. Daí a importância do trabalho do poeta, esse ser inútil. Daí porque a poesia não é necessária, mas é. É um sinal da presença de Deus entre os homens. Somente Deus poderia insuflar vida aos homens, no íntimo da solidão humana, como a poesia faz.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

o pássaro azul



o pássaro azul
pousado na grade
do parque

o tempo parado
por um instante
para contemplá-lo

espera que passe
o rio
a árvore
o olhar

o pássaro azul
encantado
um instante
voou

deixou no ar
mais que a
sua imagem

sua presença
seu ser

azul

A tartaruga azul



A tartaruga no fundo do mar azul
nada com a delicadeza de uma pétala
no ar
que paira
paira
paira
como se não quisesse nunca mais
cair.

A tartaruga azul no fundo do mar
paira como um pássaro
no ar
azul
que não quisesse nunca mais
deixar
de voar.

A tartaruga azul é tão leve
no fundo do mar
azul
como um pétala
ou um pássaro no ar
azul.

A tartaruga azul será sempre
azul
como o mar
azul
e o ar
e a pétala
e o pássaro
azul.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Caos















No princípio era o caos.

A água suja escorria
pelas escadarias.

A bandeira vermelha
de sangue e terra.

A nudez do homem
ossos ao vento

à espera da luz.

Sou eu















Sou eu quando a noite
no espelho.

Jogo a rede para
as estrelas.

Decifro a escrita
da pedra.

Um caramujo deixa
sua marca

na terra molhada.

Concha



Os pescadores remam
sob as estrelas.

A lua flutua na água do lago,
prata sobre a prata

brilhando
como um espelho.

Pesa o silêncio
das casas fechadas,

mas uma ou outra luz
bruxuleia ainda.

A urna fechada pulsa
como um coração.

Os teus olhos encontram
os meus, com lágrimas.

A montanha aponta o céu
com as suas árvores nuas,

que dor!
na concha da ausência.

Uma palavra na minha mão
se esfarela como cinza.

A borboleta















Uma borboleta pousada
no cadeado do portão

como uma flor amarela
depois azul e vermelha

um pássaro canta
ela bate as asas

bate bate as asas
para que o pássaro cante

e ele canta.

Anoitecer



Os cães disputam o osso da tarde

com o sol dentro.


O morro explode com o sangue

dos caracóis.


A parede me limita mais que

a faca na garganta.


Meu corpo cai do sétimo andar

a minha alma voa como um pássaro


ou um anjo subliminar.


Tenho o deserto na pele

nas unhas e no


relógio inútil.


Os cães latem

os gatos no telhado


namoram a lua.

Como um epitáfio

O poema
gravado
na pedra

como um epitáfio.

Do dia morremos,
da noite nascemos.

Viver é medir
a poeira da morte.

A luz nasce
dessa poeira.

(2007)

O crime

A noite
dentro
da pedra.

Eu sou culpado
desse crime.

Eu matei
a rosa.

(2007)

Ponte

















Olhar é ponte
e as águas passam

debaixo

um pássaro acima
e uma flor

teus lábios feridos
sangrando

de tanta cor
e sol na pele

da alma.

O lagarto


















O lagarto abana a cauda
as duas patas no ar

sobre a sombra

estende a língua
vermelha

lambendo o sol
e o verde da paisagem

o olhar oblíquo
colhe a borboleta

nas margaridas amarelas.

No meio do caminho


















Tinha uma estrela no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma estrela

tinha uma estrela no sapato
tinha uma estrela na língua

mastigava estrelas com a boca aberta
e os olhos fechados

para ver por dentro.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Inger Christensen

Morreu Inger Christensen, poetisa dinamarquesa (8-01-09). Como se pode ser ao mesmo tempo suave e trágica? Como um relógio quebrado, as peças espalhadas na neve. Na ausência das horas, a eternidade dói.

Se estou
sozinha na neve
é óbvio
que sou um relógio

de outro modo como poderia
a eternidade deslizar

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Edgard Allan Poe


Este poema se desprega do
tempo e compõe um sonho sem memória.
Sua velhice adormecida canta
a mesma repetida história tonta,

na voz ferida de registro torto
constante desatrela o corvo absorto
de outro poema crocitante vate.
Seu encanto repousa em seios ocos

gretados de monótonos torpores.
Os olhos comem terra, sangue e mofo,
a insânia acalentando ovos gorados

num jazigo de lavras e mistério.
Um manicômio de palavras túrgidas
dorme no descalabro da consciência.

Homenagem a Edgard Allan Poe, no bicentenário de seu nascimento (19-01-1809).

domingo, 11 de janeiro de 2009

A morte do poema


Em primeiro lugar, a página branca. Ou a tela do computador. É sempre uma lápide. Como se fôssemos dizer a última palavra. O poeta, como qualquer homem, não sabe o que vai gravar, de definitivo, final. As palavras de um poema soam como definitivas. Epitáfios. Nada mais despojado do que uma lápide. O poema é nobre e frio como o mármore. Diante dele, diante da morte, o poeta é mais despojado ainda.

É poeta porque domina uma técnica. Mas em que essa técnica pode ajudá-lo? Ela não existe por si só. Dá forma a um sentimento. A ética está por trás desse sentimento. Está por trás do homem. Mas não é a ética, nem é o sentimento, que determinam o poema. A eclosão, a explosão do poema. Essa criança insegura entre o silêncio e a linguagem. Mal toma consciência do mundo, revela-se-lhe o quanto desconhece, o mistério à sua frente.

Chega uma hora em que a palavra é nada para o poeta. O poeta toma consciência, como uma criança diante do cosmos, de que há uma palavra absoluta. Inatingível. Qualquer poema é sempre o primeiro poema. É sempre essa tomada de consciência do absoluto. Um sentimento de impotência. Nada do que possa dizer transformará a realidade. No entanto, é preciso dizer. É preciso gravar a verdade final na lápide.

O poema é invenção. Apossa-se de todas as possibilidades. Nada lhe tolhe os passos. E, ao mesmo tempo, tudo. É um pássaro na palma da mão pronto para a possibilidade do voo. Sabendo que é apenas uma possibilidade. Com as asas cortadas, a garganta cortada, cego. Enfim, tudo lhe tolhe o voo. A possibilidade e a impossibilidade do voo são o território do poeta.

A essência do poema é a falta de sentido do universo, da palavra, da vida e da morte. Precisa gravar a lápide porque sabe que aquele instante não vai sobreviver. Precisa organizar o mundo para a morte. O êxtase da vida é desorganizado pela morte. Escreve para fixar esse êxtase. É um servo da incoerência: escreve para falhar. A lápide é gravada: o poema existe, falho e inútil, contra todas as expectativas.

8-01-09

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Insônia

Quem é a terra? Quem é o cavalo
Que navega no mar verde da terra?
Os dias se atropelam entre os peixes
E um ponteiro suspenso do velame.

Um boi moroso pasta o meu sonho
No palco azul do barco naufragado.
O meu cão morto, dentro de uma lágrima,
Esquece quem sou, ao pé do meu túmulo.

A água da noite cai sobre a cidade
E enferruja a janela da paisagem.
Deus modelou o barro do tempo

Para que concebêssemos o eterno.
Monto no meu cavalo e cavalgo
Com o pêndulo roxo do universo.

Os discípulos de Emaús

Caminham pela estrada de Emaús
Conversam com o pescador solitário

Mas não o reconhecem.
Revela as escrituras, o verbo de Deus

Diz que é tarde, virá numa rede de estrelas
Os homens abrem os olhos, mas não vêem.

As portas se abrem, o estranho entra com eles
Senta-se à mesa, fala da água do caminho

Mas não o reconhecem.
Trazem o pão, o estranho o parte

Os olhos se abrem e vêem
O Senhor caminhou com eles, ensinando.

Os homens não conseguem ver Deus
Estamos sós, ficai conosco, Senhor.


(Sempre quis fazer um poema com este tema. Ei-lo. 7-12-08)

A Árvore e a Cruz

A árvore tinha a forma de uma cruz
Dois galhos abriam-se como dois braços.

Era uma estranha forma de beleza
Algo de perigo, mistério ou sagrado.

Um líquen avermelhado coagulara-se pelo tronco
Onde deveriam estar os pés e mãos do crucificado.

Umas poucas folhas verdes, muito delicadas
Procurei e descobri escondida uma flor, já seca.

Sem pensar estendi os braços na cruz
A lua tingiu-se de um vermelho opaco

Um vento frio feriu-me as faces
E inesperadamente caí em mim:

A nostalgia é um sentimento universal
O homem busca suas origens; às vezes encontra-as, na cruz.


(A Árvore e a Cruz era uma crônica publicada no jornal A Tribuna, de Santos, em 1978. Mas foi concebida, a exemplo de Jorge Luis Borges, como poema. Daí, foi fácil hoje dar-lhe forma de poema. 8-12-08)

A copaíba

















A copaíba


O sangue verde nas veias
As folhas verdes gritam
O tronco gordo se esparrama
A grande copa cobre a areia branca

Os galhos vertiginosamente para os lados
Como se não houvesse espaço acima ou abaixo

A copa baixíssima cobre a cidade
Os galhos larguíssimos abraçam os quatro pontos cardeais

A árvore em oração de joelhos no seu diminuto altar
Um candelabro de folhas verde louvando a Deus
É a mãe ungindo com o óleo a terra como um filho
A copaíba é o símbolo da vida contra a farinha da morte

É o universo que nos estende os braços
São os braços de Deus abençoando a cidade.

(A Copaíba era uma crônica, que agradou muito, falava afinal de um ícone, a Copaíba, proclamando-a símbolo de Bauru. Mas a crônica era péssima, palavrosa demais, gordurosa. Tentei extrair dela o essencial, neste poema. 8-12-08)

ODE À CIDADE - a Bauru no seu centenário


                                                                                                                                      foto: Nilton Scudeller



Ode à cidade
                            a Bauru no seu centenário

O verde se evola
no ar.
A areia
branca
me foge entre os dedos,
poalha de estrelas
que o céu destila.
Caminhos se bifurcam,
         artérias
         de um coração multiplicado.
Voo pelas ruas
com os olhos
brilhando de memórias,
Árvores
e casas
e homens
mergulham por mim a dentro.
Os rastros de meus pés
permanecem,
alheios ao tempo
que se escoa.
Os limites se esvaem
da bússola
ou da palma da mão.
Em meu peito
 pulsa
 o pulmão do universo.
                                                             






Saída de Itaguá



O barco descansa na praia

A rede enrolada como uma teia de aranha ao sol


Urubus ao lado esperam inquietos

Dois atobás passeiam imponentes dentro da água do mar


As ondas brancas quebram-se na areia

O peito branco dos atobás eleva-se muito alto


Os pescadores limpam os peixes, logo jogarão as entranhas

Para os urubus e depois para os atobás no mar


Brilhos de estrelas no escuro da areia monazítica

Onde o mar desenhou árvores delicadas


Procuro as flores e os frutos nos galhos

Eu me ajoelho e contemplo e me recolho à minha concha


O azul do céu e do mar, o verde das montanhas no espelho do mar

Como um cachorro o universo lambe os meus pés.



(Crônica já apresentada aqui, mas como era mais poema que crônica, apresento-a agora em novo formato, de poema. Era tanto poema, tão síntese como um poema quer ser, que não lhe suprimi nenhuma palavra.)

(8-12-08)


viagem


o céu azul e as nuvens brancas

sobre o campo verde as árvores


verdes e os bois até os bois verdes

porque tudo é verde nesta paisagem


uma colina verde se ergue contra o

céu azul agora com mais nuvens


muito brancas e um eucalipto verde

perfurando-as e logo muitas árvores


engolem a estrada como um abismo

verde e aquela nuvem branca todas as


nuvens são brancas aquela nuvem branca

é um bebê engatinhando no azul cerúleo


e uma garça leva o bebê no bico leve

o bebê que se esgarça como paina leve


no azul do céu sobre o campo verde


(25-12-08)


êxtase

o lagarto abana a cauda

ergue as patas pesadas com sombra


e a língua vermelha aponta o caminho o

corpo rajado sobre a sombra


no cimento negro entre a folhagem verde

tanto verde a língua se estende


vermelha entre o verde adora a borboleta

branca e vermelha e o beija-flor quieto no galho


os olhos do lagarto e os olhinhos do beija-flor

se encontram e se encantam na tarde clara em


cantante êxtase


(25-12-08)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Cony e eu

Alguma coisa nós temos em comum. Algumas coincidências no mínimo curiosas. Veja só: Cony não falou até os cinco anos, depois tomou um susto e desandou a falar, mas errado, ininteligível, como se tivesse a língua presa. Tinha. Foi operado com treze anos, mas ainda não falava coisa com coisa. Era a dislexia no caminho. Fez exercícios com bolas de gude na boca. Acabou falando até profissionalmente.


Eu falava errado e era motivo de gozação para todo mundo. Aprendi a falar com quinze anos. Estava no seminário e me autodiagnostiquei uma provável dislexia. Como não fui orientado por ninguém, não fiz exercícios com bola de gude, mas com pedras mesmo, como Demóstenes. Aprendi a falar e, praticamente só então, a ler e escrever.


Cony foi para o seminário com uns doze anos, eu também. Ele porque queria fazer bonito. Eu porque não sabia dizer não. Saímos quase oito anos depois. Cony diz que perdeu a fé, e a saída do seminário foi traumática. Deve ter jogado um palavrão na cara do padre Reitor como eu: isso é motivo para uma saída traumática. Eu um dia voltei à religião – e ele afirma que, se pudesse voltar atrás, se ordenaria padre.


Cony fez curso de línguas neolatinas, que não concluiu. Eu sou licenciado em Letras Vernáculas, tenho registro do MEC de professor de português, francês e latim, mas não me formei em neolatinas por teimosia. E as coincidências acabam aí, já é muito, não?


Mas vou dizer ainda que o primeiro livro de Cony que li foi “Informação ao Crucificado”, que narra a sua experiência de seminarista. Escrevi também um romance narrando a minha experiência. Ganhei o Prêmio Nac. de Lit. “Cidade de B. Horizonte” com ele, mas não foi publicado. Então, apresentei-o ao Prêmio SESC de Literatura e ficou entre os finalistas. Cony era um dos jurados e acredito, como consolação, que tentou premiar seu irmão espúrio.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Autorretrato
















Manuel Bandeira tinha um piano na alma

Com o teclado à mostra.


Eu, rilhando os dentes,

Carrego um piano nas costas.


_____________________



(Autorretrato é o meu último poema de 2008 e primeiro na nova ortografia.

Auto-retrato é um justamente famoso poema de Manuel Bandeira. Agora rebaixado a Autorretrato. Deveria haver um adendo nas leis ortográficas: não mexer no título das obras consagradas, aliás, em nenhuma palavra do texto. Nem nas maltratadas ou esquecidas pelo tempo, esse juiz implacável, às vezes injusto como qualquer juiz.)