sábado, 29 de dezembro de 2018

Um grande poeta




UM GRANDE POETA


Tenho a honra de lhes apresentar um grande poeta: Eduardo Carbone. Autor de três livros de poemas, “O pássaro arcaico” (2014), “Noite nutriz” (2015) e “Sombra e música” (2017). Poeta de Bauru, sim senhores. Muito pouco conhecido, porque é campeão da discrição. Muitos talvez estranhem a sua poesia, mas isso é excelente. É uma poesia, lembrando Barthes, em O prazer do texto, que faz entrar em crise a nossa relação com a linguagem. A poesia é um estranhamento. Embora o poeta seja um estranho cuja única pátria é a linguagem. A poesia deve provocar esse estranhamento, ou não será poesia de fato. Talvez fique no plano da expressão, da pura confissão. Os poemas de E. Carbone não são confessionais, mas imagens no espelho juntando-se e perdendo-se para formar novas imagens, a caminho da beleza como forma em si.
A dificuldade para se ler os seus poemas talvez seja a ânsia de interpretação. Os poemas são escritos para a fruição em silêncio de suas imagens em busca da imagem essencial, que se oferecem ao leitor como uma revelação. O título “O pássaro arcaico”, apesar de sua grande beleza, causa já de início uma estranheza. Queremos saber o porquê. Trunfo para o autor. A epígrafe já traz a chave: é tomado de um poema de Orides Fontela, uma poeta também grande e estranha. E. Carbone se apresenta no primeiro poema: “Estranho e sem rei.” O segundo toma a palavra como fulcro. E não apenas a palavra, o poeta deve servir “a palavra não”, conclui. No poema “Istanbul” a manifestação do universo se dará, não pela grandiosidade da Hagia Sophia, mas pela equiparação de homens e gatos. Poesia é epifania, manifestação do ser. Os gatos serão a sua epifania.
            “Noite nutriz” terá o seu estranhamento já no título, mas nem deveria: o que poderia mais nutrir a ânsia de mistério do homem do que a noite? O sintagma é tirado de Eurípedes, evidenciando por um lado a riqueza eclética das leituras de E. Carbone, e por outro a sua busca de uma revelação essencial. Esse livro traz uma obra-prima de sua poesia, ou de toda poesia. O poema magistral “Elementos”. Um poema que, se tivesse lido na internet ou em alguma antologia, sem indicação de autor, eu pensaria que era da imensa poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Talvez pelas imagens concretas por um lado, e por outro beirando o surrealismo. Talvez pela técnica das anáforas reiteradas, que ela já usou de forma assim bela e sugestiva. Talvez pela pureza clássica, pelo aticismo. E. Carbone surpreende de poema a poema. O que mais se poderia pedir a um poeta?
            O título “Sombra e música” é sugerido por Murilo Mendes. Não poderia ser mais sugestivo. Sempre lembro que M. Mendes é o poeta das imagens absurdas, em choque com a realidade, mas sempre concretas. E. Carbone também. Poesia tem que ser feita com imagens concretas, com substantivos, com coisas. Mesmo que sejam coisas aparentemente tão abstratas como “sombra” e “música”. Sempre a mesma procura da fonte onde jorre a água essencial. Como diz no poema “Butô 8”: ver, apalpar o “Nítido/ Ou nimbo limite.” Sempre há um limite, mas que se possa vê-lo, tocá-lo. É como se o poeta devesse almejar o impossível: “Até ver a música plástica/ Que sobrevoa o rio e o mar.” Afinal, a essência nas palavras e só nas palavras: “As palavras, todas/ Epígrafe: anunciam-me e/ Cantam-me o drama:/ Epigrama.” O poema com o espírito, a engenhosidade do epigrama. “A linguagem é a morada do ser”, diz Heidegger. Está definida a poesia de Eduardo Carbone. 








terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Ars poetica






ARS POETICA


Sei absolutamente o que é um poema,
disse García Lorca mas não contou a ninguém.
Marianne Moore diz que a poesia desagrada
mas é a único lugar onde se encontra o genuíno.

Wisława Szymborska diz que é absurdo escrever poemas
mas prefere o absurdo de escrever poemas ao de não escrever.
Orides Fontela diz que a poesia é impossível
e que assassinou a palavra, a crueldade da palavra.

Adam Zagajewski diz que os poemas de Miloz parecem
escritos por um homem rico e culto  mas ao mesmo tempo
por um mendigo, sem casa, um emigrante solitário.
Às vezes penso o mesmo de todos os poetas.

Archibald Macleish diz que o poema deveria ser
sem palavras como o voo dos pássaros, não significar
mas ser. A poesia nos faz tocar o impalpável
e escutar a maré do silêncio, diz Octavio Paz.

A poesia faz entrar em crise a nossa relação com a linguagem,
lembra Barthes. Quer dizer, a poesia é um estranhamento.
O poeta é um estranho cuja única pátria é a linguagem,
mas a sua relação com a linguagem por definição está em crise.

Concluindo dizem que a poesia é a expressão dos sentimentos,
mas o palavrão e os gemidos também são. Aliás a epifania
de Gustavo Corção foi um palavrão. Afinal a poesia também
pode ser feita de palavrões, muito mais que de palavrinhas.







sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A goiabeira




A GOIABEIRA


Estendi a mão para apanhar uma goiaba
e uma lagarta de fogo me queimou o braço.
Doeu até a alma.

Quando voltei, não encontrei nem a goiabeira.
Era como se fosse há séculos ou milênios,
no princípio da vida.

Nem o pomar existe mais, nenhuma árvore.
A lagarta de fogo era a serpente, a goiabeira era a árvore
do bem e do mal no meu quintal-paraíso.

Sou memória ancestral no exílio.






segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Gerações de mendigos

                                                                                                                                              Chagall





GERAÇÕES DE MENDIGOS

                      
Gerações de mendigos estendem as mãos.

Ó desalento, ó fadiga de rastros arranhados na fibra dos caminhos.
Invocamos horizontes e inventamos nossos espectros na brisa de uma lenda.
Sob uma chuva de asas na concha das órbitas abstratas, pétalas esvoaçantes em marulhos rubros.
E acorda o eco de águas pretéritas um vagido de nostalgia sem idade.

Os dentes magros ruminam a manhã num travor de ressaca e palavras recolhidas.
Nossa fome não tem limites, perambulamos febres insaciáveis nas urzes e no sujo.
As imagens paridas no escorbuto não germinam os ossos escorchados.
A fonte derramando-se não lava as marcas fecais das alucinações.
As larvas absorvem o lamento e corroem  o musgo dos olhares.

Ostentamos as algemas na bruma de uma ira esquecida.
A elegia dos inertes no balido interminável de uma ovelha imaculada,
manchada no veneno da faca ácida, na entrega sufocante sob o orvalho corrosivo.
As pálpebras submissas à travessia que se consuma.



quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Poemeto solto para Wilson Nanini

                                                                                                                                           Munch 1928 



Poemeto solto para Wilson Nanini


Tudo é uma questão de despaisagismo
travessia à beira da cegueira

O espelho é sempre nu
como uma ave de rapina

Nua como um trem descarrilado
no abismo

O teu vestido era um escafandro
sem asas

O sol era tanto
queimou até as minhas guelras

Do lado de lá da palavra
só a morte

O poeta voa com a febre
que o queima