domingo, 22 de julho de 2018

sábado, 14 de julho de 2018

A cadela do rio gordo (poema(s) em prosa)





     A CADELA DO RIO GORDO
              (poema(s) em prosa)



O rio estava tão cheio que as mulheres pariam e a barranca era uma vaca  sangrando. Um quero-quero berrou a festa do barro, as porcas se arrebentavam contra o céu e o sol era tão azul que gania. O meu pântano borbulhava, eu coaxava como um sapo gordo. Uma garça se inclinava para dentro de mim, me bebia.

A rosa da vaca sangrava. Eu quero todas as graças da vida: não me venham com meias palavras, eu sou um palavrão esventrado. A árvore espuma no rio, com mil crianças montadas nas suas éguas. A felicidade na barriga do sol, a festa das crianças e das porcas na água. As mulheres cantavam os lençóis da morte e da vida flutuando na água.

*

Emas correndo, emas voando com o sol nas costas, com o sol nas patas. O boi velho adora as moscas no atoleiro. As baratas são tições no capinzal. Os besouros têm sapatos pesados e sufocam. O boi engole fogo pelas ventas. O veado e a jaguatirica no ar; a anta em prece se ajoelha.

O mato se queima, os bichos naufragam no rio gordo. O rio gordo solta a cadela para cruzar com os bichos. No meu tronco chamuscado as últimas fagulhas; uma brasa queima nos meus olhos e na minha língua. O rio gordo, a cadela do rio gordo, os bichos, a fome gorda dos bichos no crepúsculo do rio gordo.

Os peixes do rio gordo são estrelas caídas, de cabecinha de fora olhando o céu. A boca aberta canta, corta o azul. Que anzol me pescaria, ó palavra? Quem tocaria a carroça da alvorada? Quem quebraria a garrafa? Eu quero os cacos e o sangue que explode de dentro.

Trago um mugido dentro do peito, trago uma cadela dentro do peito, uma cadela no cio e o rio gordo, a terra gorda.






sexta-feira, 6 de julho de 2018

MATURIDADE



MATURIDADE

Prefácio da Antologia Literária nº 9 da Academia Bauruense de Letras, que
comemora seu jubileu de prata


Nasci em 1993. Precisamente no dia 7 de julho, num suave inverno bauruense de pequenas esperanças para o futuro. O Brasil tinha saído de uma ditadura, nem sabia que tipo de governo queria. Passáramos por um plebiscito em que até cogitamos de reerguer os escombros da monarquia, enquanto lutávamos com graves crises econômicas que ameaçavam o futuro de uma democracia apenas instaurada.
Um grupo de idealistas pensa na Academia Bauruense de Letras. É uma aventura do espírito num momento grave da sociedade. O homem precisa de símbolos que o norteiem. Bauru precisava do símbolo das letras que lhe lembrasse a grandeza esquecida. A Academia é uma bússola indicando que o norte do espírito é o que mais importa. A magia da língua inflamava os olhares, que viam sempre mais longe. A grandeza da criação com a palavra iluminava o caminho. O voo inaugural estava armado.
Era a certeza de que a Bauru do final do século 20 estava pronta para o espetáculo da arte, do pensamento, do convívio numa Academia, nessa confraternização tão buscada desde tempos imemoriais. A arte da palavra é filha da memória, e sem essa memória e essa arte, como um êxtase a ser contemplado e um enigma a ser decifrado, não se pode viver. A Academia Bauruense de Letras, desde a sua fundação até hoje, sempre ergueu o seu baluarte em defesa da língua portuguesa e da nossa literatura. Como lembrava Machado de Assis, não com o poder de polícia, mas com o exemplo da criação literária.
 A Academia Bauruense de Letras nasceu idealista, sob a batuta de dona Celina de Lourdes Alves Neves, sob a égide da poesia, da palavra, que é o seu instrumento. Não tinha sequer uma casa onde instalar-se, onde deitar raízes: os atos inaugurais consolidam-se no plano da utopia, para onde converge a trajetória humana. O ramerrão do cotidiano, a vida sem novidades, que já não é vida, que desintegra a utopia, é vencido pela arte da palavra como forma de inventar o mundo e como celebrar a realidade. Tinha de seu o amor à arte e à língua, como uma ara da união do sagrado e do humano de toda criação.
Bauru deu-me guarida na esperança fundadora de vir a ser uma intérprete da realidade que então se moldava. É um anseio pela memória que libera a Academia a bater à porta do futuro. Esta antologia desse trabalho com a palavra, dessa escultura do verbo, dessa modelagem com a matéria prima que é o sopro do espírito, é uma amostra do que a Academia oferece a Bauru. O homem não sobrevive sem os valores da inteligência, manifestos no uso da palavra, essa força vivificadora que nos distingue e nos eleva a um plano diverso de outros seres.
Cheguei a 7 de julho de 2018. Foram 25 anos de luta silenciosa rumo ao pódio do espírito. Atingi a maturidade. Os acadêmicos representam Bauru com orgulho, Bauru pode orgulhar-se de sua Academia. Nosso enredo, nossa narrativa não se esgota nos fatos da existência em si ou em simples obras de arte, mas consolida-se no ideal da arte, com a palavra elevada à sua potência máxima.

                                                                                              José C. M. Brandão