domingo, 28 de junho de 2009

Meu reencontro com Rachel de Queiroz





















Eu tinha nove anos de idade quando mudamos para a cidade. Lembro-me de que minha mãe me dava um cruzeiro para comprar um Cruzeiro (a velha moeda e a velha revista daquela época). Na última página do Cruzeiro vinha uma crônica de Rachel de Queirós. A minha mãe me ensinou a procunciar aquele ch do nome dela como qu - Raquel, que eu começara pronunciando errado.
Interessante como a minha mãe, mulher da roça - o lugar onde morávamos antes nem luz elétrica tinha -, sabia quem era Rachel de Queirós. Não sei se a entendia, mas acompanhava, com admiração.
Depois li O Quinze, gostei muito mais de João Miguel, e por fim, já no fim da vida de dona Rachel, o apaixonante Memorial de Maria Moura. Lia de vez em quando uma crônica. Dona Rachel me acompanhou a vida inteira.
Em 1991 eu a encontrei na V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. Passamos uma semana no mesmo hotel, tomávamos o café da manhã, almoçávamos e jantávamos juntos. Passávamos o dia no Centro de Convenções Rebouças, em palestras intermináveis sobre literatura. Não apenas nós dois, naturalmente, mas dezenas e dezenas de escritores do Brasil inteiro. Mas estávamos juntos, eu vivia a glória literária - estar ali convivendo com todos aqueles escritores, e principalmente com Rachel de Queiroz.
Era admirável como à noite, que varávamos numa conversa descompromissada de amigos, ela, bem mais velha do que a maioria ali, tinha disposição para ir a um teatro ou a um outro programa fora.
Eu olhava a sua cara doce e pensava em minha mãe. Penso em minha mãe ainda hoje quando penso em Rachel de Queiroz. Não eram parecidas - a minha mãe era bem mais gorda... Eram parecidas - a mesma doçura. Aquela doçura de mãe.
Reencontrei-me com dona Rachel em abril deste ano, em Fortaleza. Um encontro frio, de gelar. Na Praça dos Leões, em frente à Igreja do Rosário, sentada num banco de madeira, dona Rachel envelhece de tristeza. Quem tinha tanta vida, como o bronze é triste!
Pedi a uma menininha que conversasse com ela - a foto ficou linda. Eu conversei com ela, ensaiei abraçá-la - com vergonha. As folhas caíam no chão, o dia estava cinzento, tudo estava triste.
Dali fomos ao centro cultural Dragão do Mar, onde não tive coragem de falar com Patativa do Assaré, dizendo seu poemas sertanejos em pé no pátio. Respeito e admiro a arte desse passarinho do sertão, mas é muito diferente da minha. Eu também vim da roça, mas abastardei-me bebendo de tudo que fosse cultura ou pseudocultura, intelectualismos bestas.
E eu ainda estava triste de meu reencontro com dona Rachel.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Poemas de Gregório Vaz



Apresento-lhes meu outro eu: Gregório Vaz. Um heterônimo que criei há uns 30 anos. Das três partes de meu segundo livro, é dono de duas. Aparecem depois uns 10 poemas dele em uma antologia, mas com meu nome. Me sacanearam. Mas não matei Gregório. Ele escreveu um romance, um livro de aforismos, um livro de poemas revoltados... Os poemas de um revoltado seriam a cara do Gregório Vaz, mas no fim o cara estava a minha cara. Fiz com que hibernasse. Como se não existisse. Na realidade continuava escrevendo. Linguagem desleixada. No Exílio escreveu até alguns sonetos, sem desleixo, mas numa linguagem muito diferente da minha. A sua aversão à cidade podre - título de uma das partes de Exílio: Poemas da Cidade Podre...

Não adianta explicar um poeta. Ainda mais um poeta que não existe. Pretendia mostrar poemas antigos de Gregório Vaz. Talvez alguns aforismos. Mas esta semana ele escreveu dois poemas. Criei um blog para ele. Fiz bem? Confiram os poemas: http://gregoriovaz.blogspot.com

..........link ao lado..............

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Obama e a mosca...




A RESINA

A resina brilha
no tronco da árvore
como ouro.


PEDRAS

Caminho de pedras
subindo a montanha
e água fresca descendo.


O SOL

O grito do sol
atravessa a névoa branca
entre as ruínas.


O SILÊNCIO

O silêncio cai
sobre as pétalas da rosa
como o olhar de Deus.


A VELA

Ninguém apaga
a vela acesa
no dia claro.


A BAITACA

Era uma ferida
na pele do dia
a baitaca eletrocutada.


A MOSCA DE OBAMA

Barack Obama, num lapso,
não salvou o mundo,
mas matou a mosca.


A ROMÃ

Uma gota de orvalho
na romã vermelha
parada no galho.


FLORES AMARELAS

Flores amarelas
pendem aos cachos
dentro dos meus olhos.


O CARNEIRO

O carneiro no capinzal
me olha triste
com os olhos azuis.


UMA ROSA NÃO É SÓ UMA ROSA

No tronco de uma árvore,
num buraco escuro,
nasceu uma rosa.


A GOTA DE ORVALHO

A gota de orvalho
nas pétalas da rosa.
A beleza chora.


A ORELHA-DE-PAU

A orelha-de-pau
ouve o silêncio
e sorri para mim.


FOLHAS VERDES

As folhas verdes
na água da piscina azul
nadam em silêncio.

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"Obama e a mosca... ou de como o poeta fazia seus poeminhas quando a política e suas mixórdias se intromete na poesia, na figura do imperador com os chifres e sua real sensatez, que fulmina a pobre de uma mosca com um golpe fatal, durante uma entrevista no dia 17 de junho"

terça-feira, 23 de junho de 2009

Cristal




Cultivo a minha rosa no mais puro
cristal, mas uma febre me rói pétala
a pétala com uma fome louca
e da flor resta a jarra solitária.

Um cavalo galopa no meu peito,
com seus cascos de fogo me transporta
ao delírio, à neblina da memória.
Tenho uma cruz na boca, tenho terra

nos olhos e uma noite me solapa
cruel, sorrindo escárnio e pus e campa.
Leva-me a insânia numa sem regresso

viagem pelos pântanos escuros
da alma em sua procura esconsa e azeite
e sei quem sou na forma do poema.

domingo, 21 de junho de 2009

Vigília




Quem é a terra? Quem é o cavalo
Que navega no mar verde da terra?
Os dias se atropelam entre os peixes
E um ponteiro suspenso do velame.

Um boi moroso pasta o meu sonho
No palco azul do barco naufragado.
O meu cão morto, dentro de uma lágrima,
Me esquece e uiva à loucura da vida.

A água da noite cai sobre a cidade
E enferruja a janela da paisagem.
Deus modelou o barro da memória

Para que concebêssemos o eterno.
Monto no meu cavalo e cavalgo
Com o pêndulo roxo do universo.

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Foto: Sônia Brandão

terça-feira, 16 de junho de 2009

Exercícios de admiração



ARTE DE MORRER

Os corpos se entendem
mas as almas não
no frio do caixão.


E AGORA, JOSÉ?

A rosa agoniza
na palma da mão.
Mas você não morre, José.


JUAN RAMÓN JIMENEZ

Atira a pedra na água
e esquece. Você nunca mais
será o mesmo.


GOETHE

Qual a forma do meu poema?
Ainda estou elaborando
o nome da rosa.


ROBERT BROWNING

A pedra cai na água,
o pássaro imóvel no galho.
A rosa, ao sol, se renova.


WALLACE STEVENS

Os melros na relva,
os melros dentro de mim.
Onde estão? Quem fui?


CECÍLIA MEIRELES

Em que espelho ficaram perdidas
as pétalas da rosa?


FRANCIS PONGE

As coisas são as coisas:
não têm alma, não vivem,
mas me fazem mais vivo.


Rosalía de Castro

Vozes verdes, verdes ventos.
Elaboro o meu poema
como um cavalo ruminando.


ANTONIO MACHADO

Caminho na tarde verde
à beira da água clara
onde as nuvens se miram.


JOÃO CABRAL

A cabra magra
resiste comendo pedra.


MANOEL DE BARROS

O rio engole a palavra
e espera a rosa
se mirar em suas águas.


BECKETT

Na luz negra do exílio,
falo com uma pedra
na língua.


WILLIAM BLAKE

Não sou do céu, não sou da terra,
mas comungo, com meu corpo, a flor da alma.


E. A. POE

No silêncio do mar,
o corvo apaga o farol
e sangra a aurora.


DEUS

Abismo.

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Fausto Cunha publicou, in “A luta literária”, uma seção de ensaios com o título “Exercícios de admiração” (em 1964 – mas eu o li em 1970 ou 71). Lembro-me de que um dos homenageados era Mário Quintana, a quem poetas e críticos “intelectualizados” torciam o nariz (existem vacas de nariz sutil – lembrando o romance de Campos de Carvalho).

Em 1986, E. M. Cioran publica “Exercices de admiration”. Até o filósofo do azedume – de uma linguagem delicada, de poeta, que enleva, mas sem nunca deixar de ser azeda – se rendeu ao prazer e dever de tecer belas homenagens aos santos pagãos do seu Panteão.

A mim me ocorreu juntar nesta página alguns de meus exercícios de admiração, mínimos, mas frequentes.

No último poema, “Deus”, não fica evidente a quem é dedicado. Oswald de Andrade e Adriana Godoy. Li esses dias que Oswald é autor do menor poema do mundo: “AMOR // Humor.” Não quis ficar atrás e examinei minha memória, meio fraca, mas nem tanto. Lembrei-me de um poemeto que fiz há uns dois anos “O SILÊNCIO // da rosa. / Abismo.” Curto, mas nem tanto. Então, lendo a última palavra, me lembrei de Adriana, que leu meio incredulamente, mas muito humanamente, meu poema “O abismo de Deus”, e num estalo, numa iluminação, estava pronto o poema: a palavra “abismo” não é uma palavra, mas uma imagem, mais, uma multiplicação de imagens, uma alegoria do universo, que cabe nela, embora, e por isso mesmo, não a explique.

sábado, 6 de junho de 2009

O abismo



O abismo das estrelas, o abismo do mar, o abismo.
Sempre estamos no abismo, irremediavelmente.
Com o silêncio das estrelas, dentro de uma concha.
Ouvindo o grito agônico de uma gaivota ferida.

Quem somos, quem seremos, quem fomos? Memória.
Somos (seremos, fomos) escravos do tempo cruel.
Girando as engrenagens do relógio, nosso domicílio.
Não somos mais que um peixe fora d’água, esperneando.

E vivemos perdidos dentro desse peixe, nosso universo.
Sufocamos sem ar no escuro desse peixe impossível.
A vida é impossível, sabemos. A concha e as pérolas.

O que vemos além das estrelas? Além do mar original?
Nós esperamos uma resposta, mas Deus, magnânimo,
Criou-nos livres como gaivotas voando sobre o abismo.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Poemas breves




O CARAMUJO

O caramujo
entre as pedras e as flores
dorme a meu lado.


ASSASSINATO

Matei a lagarta
e a rosa vermelha
na minha roseira.


A VELA

A vela entre as flores
do altar na colina
queima em silêncio.


NA ESTAÇÃO

Murcha nas ruínas
da estação de trens
um ramo de flores.


A PAPOULA

A papoula floresce
nos meus olhos loucos
e morre.


A SOMBRA

Na sala vazia,
no espelho quebrado,
cai a sombra.


A RÃ

Uma rã coaxa
namorando a lua
na minha lagoa.


O CAVALO

Caído num buraco,
o cavalo morreu
de velhice.


OS CACHORROS

As casas no escuro
e os latidos dos cachorros
sob a chuva.


O LIMO

O limo escorrendo
no muro do quintal.
Saudades da infância.


A LAGARTA

A lagarta carrega
uma flor nas costas,
torta de dor, ao sol.


A ARANHA

Matei uma aranha
na parede da varanda.
Fiquei mais só ainda.


O RATO

Deitado na rede,
fiquei ouvindo um rato
que chiava no escuro.


O CACHORRO

Encontrei o meu cachorro
no cemitério entre os túmulos
a minha espera.


O COGUMELO

Vida branca ao sol,
cresce o cogumelo
entre os sabugos, no pasto.


A TAMPA

A tampa cobrindo
nada, nenhuma aparência,
enterrada no canteiro.


O PENSADOR

Macaco diante da morte,
em solidão no universo,
o homem pensa há muito tempo.


O REI E O POETA

O meu reino por um cavalo!
O meu reino por uma palavra!
A diferença entre o rei e o poeta.

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“Poemas breves” é o título de uma das seções com... poemas breves, oras – de um livro com meus melhores poemas dos últimos 20 ou 30 anos que pretendo publicar, não sei se ainda este ano.

“Poesia mínima” é muito bom – e eu terei umas três seções de poemas breves nesse livro... – mas explica muito já no título.

Gostei do nome “poemínimos” – mas até uma antologia de poemas de Beckett em português tem esse título. E vai lembrar “poesia mínima”, “minimalismo”, teorias sobre a poseia com o mínimo de recursos – que pode ser o que tento fazer, mas não preciso confessar já no título.

“Poemas breves” me parece o ideal – não diz nada, apenas que são curtos.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Cesare Pavese - uma tradução




A MORTE VIRÁ E TERÁ OS TEUS OLHOS

A morte virá e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
da manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês cada manhã
quando, sob ti só, pendes
no espelho. Oh, que esperança,
nesse dia saberemos, também nós,
que és a vida e és o nada.

A morte tem um olhar para todos.
A morte virá e terá os teus olhos.
Será como deixar um vício,
como ver no espelho
ressurgir uma face morta,
como ouvir os lábios fechados.
Desceremos mudos ao abismo.

22 de março de 1950.

Trad. – José Carlos Brandão

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VERRÀ LA MORTE E AVRÀ I TUOI OCCHI -

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi -
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Cosí li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla.
.
Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello psecchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.

22 marzo 1950

Cesare Pavese
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foto em http://www.bravagente.com/not01_0309/ital_not20090307a.htm