sábado, 20 de novembro de 2010

Apocalipse de Drummond e meu pai






APOCALIPSE DE DRUMMOND E MEU PAI


Meu pai morreu no mesmo ano
que o poeta Carlos Drummond de Andrade.

Era fevereiro e o mar rugia nos meus olhos,
mas ele morreu longe do mar.

(Drummond morreu olhando o mar? Umas
duas ou três gaivotas e o vai-e-vem das ondas).

As folhas caíam (não era outono) molhadas
do orvalho da noite, ao vento e ao sol.

Meu pai montava a cavalo e gritava
como um deus para a vida.

Drummond
lembrava o pai a cavalo como se pedisse perdão
do silêncio.

O meu pai e o poeta Drummond morreram
porque era hora.

Tinha uma pedra no meio do caminho.

Sinto uma súbita alegria
ao me lembrar de meu pai
ao lado de Drummond
na eternidade.

A minha boca está seca, qualquer palavra
se quebraria.

O dia,
como a morte,
é uma fatalidade.

As crianças gritam
e não acordam meu pai,
que gostava de crianças dormindo.

Venta
neste momento
e em 1987.

Imagino o poeta sorrindo,
mesmo na morte, imóvel.

O morto é uma estátua
fria
na praia,
em qualquer lugar.

(Não deveriam fazer estátuas para os mortos.)

O poeta Drummond teve uma morte pública,
ônibus passam, a fumaça passa, os jornais anunciam
o feito histórico (o poeta morto como uma estátua).

O meu pai pediu um último cigarro, olhou a vela bruxuleante
(haveria vento no quarto? O vento do eterno
não se move).


O meu pai disse adeus,
e partiu a cavalo
sem se levantar do leito.


A cidade pequena
e os parentes sorriram contemplando o seu morto
particular.

O poeta e meu pai
(anônimos)
sorriem na eternidade
satisfeitos
com a poesia do fim dos tempos.

__________

18 comentários:

Marcantonio disse...

Algumas palavras de imensa admiração, porque as restantes me fogem mergulhadas no espelho desse poema-assombro.

Abraço.

Eliana Mora [El] disse...

a marca da perda
a comparação [a diferença]
no teu modo ímpar de dizer poesia

[sempre penso em meu pai recitando lá, na eternidade...]

Comovente e belo.

beijo,
El

chica disse...

Saída diretamente do teu coração.LINDA poesia, linda analogia! abraços,ótimo fds,chica

Ira Buscacio disse...

Brandão,

Sua poesia engoliu minhas palavras. Tocou-me e mergulhou na minha própria história.

Bjs com toda admiração

Domingos Barroso disse...

Vasto poeta e meu amigo,
abraço-lhe a alma
ternamente
...

(poema memorável,
memorável
...)

Art'palavra disse...

Meu querido mestre Brandão: li o seu poema e bateu uma saudade danada de meu pai. Nossos pais estão galopando no ceu. Paz e bem, Grauna

Jota Brasil disse...

Demais!!!
A frase "Não deveriam fazer estátuas para os mortos", corrobora com meus pensamentos a respeito do assunto!!!

Muito bom ler meu mestre hehehehe,,,
melhor ainda seria eu poder saber escrever assim : )

Anônimo disse...

Gostei do seu blogue. Muito interessante! Parabéns!
Abraço

Luiza Maciel Nogueira disse...

Drummond merece e seu pai tambem para tamanha poesia de vida! Muito belo! Beijo!

Unknown disse...

AI josé Carlos!

Como lembro desse dia! Como chorei, por conhecer e admirar Drummond em todos os aspectos. Como ele amava Julieta, sua filha!

Agora, quando me lembrar desse dia, lembrarei do seu pai. Ser pai de poeta deste porte, é uma honra!

Sim! Imortalizar numa estátua, é bobagem!

Beijos, poeta!

Mirze

Carla Farinazzi disse...

Nossa, Brandão, você tem o dom, hein! Que coisa linda escreveu, mais uma vez!
Peço licença para guardar pra mim esse poema...

Beijos

Carla

dade amorim disse...

Vista desse ângulo, a morte não parece tão terrível. Mas concordo com você, um morto não devia virar estátua, que é como se morresse de novo e ficasse para sempre em exibição. A estátua de Drummond está aqui, em Copacabana. Às vezes bêbados ou medigos sentam junto dele para conversar. Alguns chegam a roubar seus óculos. Talvez isso amenize sua imobilidade.

Beijo, JC.

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Poeta

Hoje deixou-me sem palavras, senti a penas o seu poema.

deixo um beijinho
Sonhadora

Fátima Guerra (Mellíss) disse...

Querido Brandão

Não sei o que dizer.
Minha alma se fez prece, lendo a sua ...
Você e um poeta maravilhoso, cativante.
Não sou ninguém para comentar, mas meu coração transborda e as palavras escapam.
Obrigada por esses momentos especiais.
Beijo
Fátima Guerra

Néia Lambert disse...

Um lindo poema, uma linda analogia com Drummond, nosso mestre na poesia.
Um abraço

Fátima Guerra (Mellíss) disse...

Querido Brandão



Preciso de sua autorização, para lhe enviar uma correspondência, mas não tenho seu e-mail. Seria
´possível envia-lo para mim, no endereço:
mfrgp@luanove.com.br
Agradeço sua atenção.
Carinho
Fátima Guerra

nydia bonetti disse...

Meu pai também tinha olhos de mar. E amava Drummond. Creio que os três, tinham, olhos de amar.
Um dos poemas mais incríveis que li ultimamente, Brandão. Lindo de amar. beijos!

Fernando Campanella disse...

Uma maravilha, Brandão, que linda homenagem aos dois pais, amor e poesia, juntos, reunidos na mais sutil eternidade da alma.
Olha, semana passada perdi alguém muito importante pra mim, uma tia-mãe, e comecei a escrivinhar algo sobre ela. Teu poema me anima a continuar, a acreditar que posso realizar uma bela homenagem a ela, como a tua aos pais. Abração.