segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Três paráfrases




                                
1. O carrinho de mão vermelho

Quando criança eu tinha um carrinho
de mão vermelho
como William Carlos Williams.

Vivia marcado de cocô de pomba
branco
sobre o vermelho.

Eu enchia o carrinho de pedaços
de madeira e partia
para construir o mundo.

Nada mais tinha importância.


2.A PEDRA

Uma pedra é uma pedra, é uma pedra.
Não quero que a pedra seja outra coisa.
A pedra em si vale um poema.

Não é preciso dizer nada.
Nenhum símbolo, nenhuma imagem.
É uma forma completa, única, absoluta.

É um poema.


3. EM CRETA, COM O MINOTAURO

Em Creta, com o Minotauro
esquadrinho o labirinto.
Instauro o meu reino restrito.

O sol queima os sonhos.
Eu quebro o candelabro.
Desenrolo o novelo da dor.

A esfinge me decifra: sou
o poeta com a lira em delírio
em Creta, com o Minotauro.


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1. O Carrinho de Mão Vermelho talvez seja o mais famoso poema de William Carlos Willians. É certamente o que mais exemplifica a sua técnica de tirar do poema tudo que é excesso, usar palavras comuns, criando uma pintura clara, quase sem imagens. Não merecia que eu lhe acrescentasse nada, e não o fiz. Acontece que eu tive um carinho de mão vermelho, que enchia (uma amiguinha de infância, uns quarenta anos depois, me lembrou o caso) de pedaços de madeira, como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo. Então, eu precisava registrar o fato.
O poema de WCW é lido fora do contexto. WCW era médico-pediatra e estava em visita ao uma menina doente, em agonia, quando viu pela janela o carrinho vermelho. Daí a sua importância, que, no meu caso, é simples memória.
Deixo abaixo o poema de WCW, para lembrar aos leitores – mais do que comparar.

THE RED WHEELBARROW

so much depends
upon

a red wheel
barrow

glazed with rain
water

beside the white
chickens.

 

O CARRINHO DE MÃO VERMELHO

tanta coisa depende
de um

carrinho de mão
vermelho

esmaltado de água de
chuva

ao lado das galinhas
brancas

(Trad. José Paulo Paes)

2.  O verso “Rose is a rose is a rose is a rose” deve ser mais conhecido do que todo o resto da obra de Gertrude Stein. E é vítima de uma falácia: faz parte de um poema de 1913, e o primeiro Rose refere-se ao nome de uma pessoa, - mas é outro texto lido fora do contexto, como a afirmação de que as coisas são o que são. É nesse sentido que empreguei no meu poema. Francis Ponge ensina no “Le parti pris des choses”, justamente esse “as coisas são o que são”, que eu já aprendera com João Cabral.
Tenho cansado de ver a citação dos versos de Adélia Prado: “Deus de vez em quando me castiga. / Me tira a poesia, olho para uma pedra e vejo uma pedra.” Elogiosamente. E são belos versos. Mas citados fora do contexto, um dos mais longos poemas de Adélia, que fala da condição humana, não da técnica poética. Quanto à técnica, ela sabe que a poesia é linguagem. Que as palavras se tornam especiais com o trabalho da linguagem no poema.
O meu poema refere-se a essa ideia.

3. “Em Creta, com o Minotauro” é o nome de um dos melhores poemas de Jorge de Sena. Vi à exaustão o Minotauro nos labirintos de Jorge Luis Borges. Já não era novidade para mim, por minha formação clássica. É o meu poema mais pessoal dos três acima, quanto a linguagem e visão do mundo. 

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9 comentários:

Carla Farinazzi disse...

Oi Brandão!

Mais uma vez venho ao Poesia Crônica para felicitá-lo pelo brilhantismo da sua obra. Três poemas lindos, mais a explicação. Você escreve com doçura, intensidade e ao mesmo tempo simplicidade, o que deixa os textos limpos e claros. Adoro-os!

Beijos

Carla

Rafael Castellar das Neves disse...

Boa, José Carlos!!

ótima derivação e sugestão!!

[]sss

Luiza Maciel Nogueira disse...

tbm sou dessa linha que a pedra em si já é poesia pura :) e todo o resto

beijos!

Ira Buscacio disse...

Brandão, querido poeta,

Sua poesia é um verdadeiro desbunde.
A forma que vc costura o poema, singular, nos faz vivênciar, não somente a sua história, a nossa tb.
Os arremates delicados, sem os excesso, como vc bem o disse, que fazem as imagens crescerem em relêvo.
O seu carrinho de mão não é apenas memória, mas é vida, amor, que nos toca e a flexa disparada ao coração, que é o lugar certo de viver.

Bjão e linda semana de paz

Edson Bueno de Camargo disse...

Poesia é isto, reescrever, reescrever, reescrever.

Uso a frase da Adélia como uma das epígrafes de meu blog, e pasme, sempre pensei na condição humana, de quanto somos limitados por nossas idiossincrasias.

A pedra é o próprio existir humano.

Marcantonio disse...

Você é um poeta sempre surpreendente! Uma postagem muito rica.

Grande abraço.

João disse...

Cada vez mais sensato e paradoxal
usufruindo seu talanto para o seu melhor. Abrçs

João;

chica disse...

Grande inspiração essa ,mais uma vez! abraços,tuuuudo de bom,chica

Unknown disse...

José Carlos!

Que maravilha! Não poderia dizer qual o melhor, por serem únicos e terem sua beleza ímpar em cada verso.

Uma verdadeira aula de poesia e contextualidade.

A "pedra" e O "carrinho vermelho" são dois poemas que se lê ajoelhado.

Parabéns, poeta!

Beijos

Mirze