quinta-feira, 19 de junho de 2008

O instrumento

A jovem cantora (27 anos) Ana Cañas, como por acaso, diz: “Descobri o canto como um instrumento”. Foi quando se descobriu cantora. O poeta também se descobre poeta quando descobre a língua como um instrumento. Se você tirar música de sua língua, se o seu poema cantar, se for autônomo, valer por si só, você é um poeta.

Como eu sei isso? Basta você ouvir alguém cantar para saber que é um cantor. Assim com o poeta: basta lê-lo. Quem desafina, não “tem voz” ou “canta muito bem”, apenas, certamente não é um cantor. O poeta também: não basta escrever muito bem. O seu poema deve soar como perfeito. Não deve ser como o “cantor de banheiro” ou como quem canta para um grupo de amigos.

Por isso não é fácil saber se alguém é um poeta: seus primeiros leitores são os parentes e os amigos. Péssimos julgadores. Sempre é preciso que outrem lhe diga se é um poeta. O problema é que esse “outrem” é um grande mentiroso.

Feliz ou infelizmente, é preciso publicar. É preciso que “outrem” seja de fato outrem, alheio, indiferente. Se o seu poema não o deixou indiferente, você é um poeta.

Mas como saber se ele entende mesmo do assunto? Se não está enganado? Não importa: você é um poeta para ele.

Assim, os concursos literários são um mal necessário. Embora haja apadrinhados, como em qualquer lugar, os jurados vão lê-lo com olhos críticos. Vão lê-lo comparando-o a cem, duzentos, trezentos ou mais outros poetas: se sobreviver a esse teste, você é um poeta.

Veja bem: é preciso sobreviver aos erros desses jurados, a seus subjetivismos, suas idiossincrasias, a algumas cartas na manga. Muitas vezes à burrice desses jurados. Podem estar julgando, como os críticos, porque não sabem criar.

Vou terminar saindo um passo ou dois do assunto. Citando Betty Milan (de ouvido): “O artista poderia ser chamado de Salvador, como Cristo. A arte salva.”

Depois, André Gide (segundo a mesma Betty Milan): “Quanto mais entraves, mais perfeito o texto”. Lembro que esses entraves não devem aparecer, num texto, em sua arte final. É o que dizia Olavo Bilac, no seu Arte Poética. Apesar de ser um parnasiano superficial, era um artista da palavra. O poeta tem que ser um artista da palavra.

Falando em entraves, lembro-me de Cioran, que, romeno, lutou contra os entraves da língua francesa até escrever no mais puro francês.

Mais uma observação. O escritor precisa, inclusive, violar a gramática. Proust violava. Não é o quanto basta para se fazer um Proust. Não basta, mas é uma condição sine qua non.

Por fim. A nota final. Decisiva. A poesia deve exprimir a eternidade. O poeta só escreve para lutar contra a morte. Se você não pode deixar de escrever, tem que derrotar essa inimiga fatal, a morte, em nome da eternidade, você é um poeta.

Grande coisa?! Grande condenação. O poeta é um condenado a lutar contra a língua, seu instrumento musical, para tornar palpável a eternidade. Uma missão impossível.

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