Imagens a Crusoé
Lá pela página 100 de sua obra centenária “Ortodoxia”, G. K. Chesterton fala da lista dos objetos resgatados do naufrágio de Robinson Crusoé. E conclui que o maior dos poemas é um inventário. Cada utensílio torna-se ideal porque Crusoé poderia tê-lo perdido no mar. Assim, o nosso grande poema é tudo o que temos, o inventário dos salvados do naufrágio do nosso universo.
Pensei fazer o meu inventário. Não posso resistir ao convite de compor um poema. Mas me previno: tudo que tenho. Não pretendo lembrar tudo que tive. “Funes, o Memorioso”, de Borges, é a história de um personagem que lembra tudo, cada folha, cada nuvem, cada palavra que vira ou ouvira. É enlouquecedor. Por isso a nossa memória é seletiva. Lembramos o mínimo, para que não enlouqueçamos.
Vou fazer o inventário dos objetos que tenho. O horizonte que vejo pela janela à minha direita, onde o sol se põe pintando as nuvens e as árvores, é meu – mas é muito vasto. Preciso falar das coisas pequenas do meu cotidiano. À minha esquerda está a estante com os meus livros, os objetos mais preciosos que compõem o meu mundo. Embora não tenha muito mais que 400 livros, número que estabeleci há uns 40 anos segundo sugestão de Dantas Motta, como ideal para ler e reler em minha vida, - não poderia falar sobre cada um deles. São muitas recordações. Um livro é um homem, é um mundo.
Machado e Graciliano, paternais, severos, me olham enviesado. Os poetas? Não posso preterir nenhum: são muitos mestres que me acompanharam a vida inteira. Maternais, digamos, ao contrário dos prosadores, mas também severos, também me olhando enviesado. Dois livrões amarelados, feios, a ligá-los somente um monossílabo vermelho na capa: “Eu” e “Só”.
Não quero ser injusto com nenhum poeta. De quem me lembraria? Os meus olhos percorrem a estante. Paro em Saint-John Perse. E me lembro de que Sain-John Perse escreveu um livro chamado “Images à Crusoé”. Quê?! Vou conferir a data, sei que é um dos primeiros livros de S.-J. Perse, do início do século passado. Leio: 1909. Não é que foi publicado um ano depois da “Ortodoxia” de Chesterton?! Teria escrito “Images à Crusoé” sob a influência da “Ortodoxia”? Em sua nobreza, alta, senhora dos valores do espírito, último baluarte da grandeza humana – é obra elaboradíssima, de modo algum se pode dizer que foi feita às pressas. Vejo que há poemas datados de 1904, por exemplo. Mas é agradável reencontrar lá um poema ao papagaio, ou ao guarda-sol de pele de cabra, ou mesmo a Sexta-Feira. Como propôs Chesterton, é um inventário das coisas de Crusoé e do único ser humano com quem conviveu.
Nós trombamos todos os dias com dezenas, centenas de pessoas. Nem temos tempo de reparar nelas. Crusoé tinha apenas Sexta-Feira e todo o tempo do mundo para observá-lo intensamente. Crusoé tinha apenas um punhado de objetos, por isso essenciais. Nada podia ser desperdiçado. Crusoé tinha apenas um livro, por isso essencial. Um Homem e um Livro. Podia se dedicar inteiramente, de corpo e alma, a seus poucos pertences, ao Homem e ao Livro. Chego a ter inveja da miséria de Robison Crusoé. Senhor, que a minha miséria me seja leve, que eu saiba viver a minha miséria com todas as minhas forças. Senhor, que eu não seja menor que os objetos que me circundam, e que eu seja digno de conviver com os outros homens, meus irmãos. Todo o peso das pobres imagens de Robison Crusoé cai sobre mim – e me calo.
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