António Lobo Antunes disse: “Só vale a pena começarmos um romance quando temos a certeza de que não somos capazes de o fazer”. É uma dessas frases de efeito. Mas não significará um pouco mais do que isso?
Costumo ver escritores dizendo que não valeria a pena escrever um livro, não teria graça, se soubéssemos o final de antemão. Há quem discorde, que o escritor digno desse nome deve planejar uma obra e realizá-la tim-tim por tim-tim como a tinha planejado. Sem segredos, sem mistérios. Matematicamente.
Bonito. Mas não é assim que funciona. A criação tem segredos e tem mistérios. Todos os grandes escritores reconhecem isso. São fascinados pelas surpresas e pelos milagres que o realizar de uma obra nos reserva. Sem graça é traçar um esquema e colocar a obra dentro desse esquema. E a obra só pode sair sem graça.
Os grandes escritores são capazes de realizar milagres. Não sabem como, mas realizam. Os outros são pequenos, são professores, são os críticos: não fazem, mas ditam as regras de como se deve fazer.
Há exceções, todas as regras têm as suas exceções. João Cabral de Melo Neto. Para o engenheiro da composição o poema é realizado segundo um projeto exato, sem inspiração, sem acasos, sem a ação do inconsciente. Anula-se a expressão, fica valendo apenas e tão-somente a construção.
É tão bela a proposta de João Cabral que parece verdadeira. A beleza é irmã da verdade. Eis uma bela afirmação, mas em desacordo com João Cabral e com os valores estéticos que orientam a arte há muito tempo. E por falar em valores estéticos e em orientação da arte, entramos novamente em desacordo com João Cabral. Não há valores, não há orientação: há construção.
Mas, na prática, é o que acontece? Acontece que existe o inconsciente, que por mais que se monte um esquema, há o papel do acaso, do imponderável, de uma iluminação que outrora chamaríamos inspiração, ditado das musas ou do espírito. Ficar apenas no esquema produz a arte dos professores, correta, sem surpresas, exata, feita com perfeição, mas sem criação. Na criação, o buraco é mais embaixo.
A arte de João Cabral e dos construtivistas, então, não é arte? Pode ser grande arte, apenas não reconhecem o papel do inconsciente, de uma visão especial, de uma intuição mágica, da epifania que pode acontecer num momento, e noutro não. Epifania é manifestação tão especial que está associada ao divino.
Nós diríamos que é a manifestação do inconsciente, que, de um acúmulo de experiências, de repente se acende uma faísca e o artista consegue concretizar esse instante numa obra de arte.
Permanece estranha a afirmação de António Lobo Antunes. Ter certeza de que não o conseguiríamos realizar? Lutar contra o impossível? Se sei que é impossível, por que gastar meu tempo e energia em tal obra? Não sei o que vai acontecer, não sei que obra irei realizar, que reações terão tais personagens, como dominarão o romancista, ou que imagens irei criar no poema, para onde as palavras me levarão.
Esse mistério me fascina e desvendá-lo pode se tornar a razão-de-ser da criação. Mas, se tenho certeza de que não conseguirei realizá-la, por que insistirei em criar tal obra? Estultície. Somente posso pensar em estultície. Mas porém, fica uma interrogação: e se ele tiver razão? Se, pelo menos para ele, não for esse o caminho?
Jorge Luis Borges conta que sofreu um acidente e decidiu escrever um conto para ver se ainda seria capaz de criar. Um poema não valia. Poemas ele tinha feito muitos. Tinha certeza de que os realizaria. Um conto era outra história. O conto era o desafio. E Borges escreveu o seu primeiro grande conto, que tem o nome mais ou menos, “Tlor, Uqbar, Orbis Tertius”. Assim nasceu um contista: de um desafio. Mas pode ser uma exceção.
Interessante que Borges acaba conseguindo notoriedade pelos contos fantásticos que cria, e não pelos poemas. O desafio é tudo. Mas, por outra, como Borges é um grande mistificador, pode ser que realizasse os contos fantásticos com esse desafio ou não.
Pode ser que António Lobo Antunes também seja um mistificador e também realizasse seus romances com ou sem desafio. Talvez o primeiro romance tenha sido um desafio, depois já saberia ao certo que realizaria os outros.
Talvez. Quem pode afirmar o que aconteceria se não acontecesse? E pode essa assertiva valer para António Lobo Antunes, não para outros. Pode valer para todo mundo ou para ninguém. Quem sabe dos escaninhos da criação, dos enigmas, das pedras-de-toque que um escritor usa, sabendo ou sem saber?
Todos temos o direito de, uma hora ou outra, dizermos besteiras. Por que não António Lobo Antunes, apesar de ser um grande escritor? O que pensamos que é besteira não pode ser uma bela verdade? E caímos na contradição que já citamos: a beleza da verdade ou a verdade da beleza? Tentar explicar a criação é tautologia apenas.
António Lobo Antunes é português e os portugueses, sábios, dizem que os artistas são artistas porque não sabem, mas fazem.
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