segunda-feira, 29 de setembro de 2008

No centenário de Machado de Assis

Hoje comemoramos o centenário da morte de Machado de Assis. Comemorar-se a morte? É meio estranho; no entanto, é o que temos. Tivemos e ainda temos este escritor enorme entre nós: isto é motivo de comemoração. Todo povo precisa de seus heróis; às vezes esquecemo-nos de que há heróis no campo do Espírito; pois os há, e Machado foi o maior deles, neste pobre Brasil.

Já afirmei que todos somos filhos de Machado de Assis; os que escrevem páginas magistrais e nós, os outros, que escrevemos páginas de discípulos geralmente envergonhados. Há os filhos que renegam o pai, como de hábito, mas como não é o hábito que faz o monge, são filhos, por eles mesmos proclamados bastardos, mas filhos. Há, e são legiões, os que se orgulham do pai. Machado era negro e pobre, o que nos é mais motivo de orgulho do pai que temos; venceu duas das maiores barreiras que o homem tem no seu caminho, o preconceito e a pobreza, uma filha da outra; uma prova de que não há barreiras para o gênio.

Somos filhos de um gênio. A sensibilidade brasileira, na língua que escrevemos, é machadiana. Com a sua tinta da galhofa e da melancolia, às vezes muito mais galhofa do que melancolia, ou vice-versa, uma querendo encobrir a outra, como se fossem emblemas vergonhosos.

A tinta da galhofa e da melancolia! Esta é a primeira passagem machadiana apontada como preferida por escritores e intelectuais. É boa, define bem a sensibilidade brasileira, mas eu quero botar a minha colher no angu e apontar a minha, que talvez não seja apenas minha. Rachel de Queirós, décadas atrás, quando eu era ainda um adolescente, disse que daria toda a sua obra para ter a honra de ter escrito os dois capítulos finais de Quincas Borba. Eu também. Por pequena que seja a minha obra, e quanto menor, mais o anseio, ah, como desejaria ter esse estilo enxuto e largo desses dois breves capítulos.

Costumo dizer que meu escritor preferido é Graciliano Ramos, embora reconheça a grandeza de Machado e de Guimarães Rosa. Digo que Graciliano tem maior carga de humanidade no que escreve, de sangue, de sentimento em seu estado natural, não conspurcado pelas impurezas do intelectualismo, como em Machado e em Rosa. Mas tenho que me desdizer observando esses dois capítulos mínimos: suas palavras estão em estado puro, foram elas que geraram um Graciliano; e a emoção vem também em estado bruto, polida, mas sem atingir a abstração dos polimentos intelectuais.

Não é pouco escrever estas palavras, e eu ia dizer, e digo: palavras-cinzel, tanto cortam a matéria bruta, virgem, do que dizem, como se o não dissessem, como se tivessem vergonha de dizer tanto: “Não morreu súbdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, – uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas.”

É dizer demais, principalmente no final: “pegou em nada, levantou nada e cingiu nada”. O coitado do personagem, em sua pobre agonia, não pega, nem levanta, nem cinge nada, mas quanto o escritor, com a sua carga de criador descomunal, nos dá a ver com essas palavras mínimas. Nós, seus distantes e embasbacados leitores, vemos e apalpamos a ilusão do infeliz Rubião. “Onde os espectadores palpassem a ilusão.” Sim, senhores: nós acariciamos a ilusão, nessas palavras medidas.

E querem maior força no descrever a abdicação deste mundo desditoso? Já usei a palavra, que repito: abdicação. “A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada a abdicação.” Dois minutos de agonia, dous! – é preciso dizer bem. Um trejeito horrível, e que outra careta esperavam de quem se despede no seu momento supremo? Horrível. Não é preciso explicar mais nada. “E estava assinada a abdicação.” Como se fôssemos imperadores desta nossa condição humana, e abdicássemos. Em favor de quem? Contrariados, mas por vontade própria, os imperadores assinam sua abdicação. Nós teremos alguma vontade, no último degrau?

Por fim, as derradeiras palavras do romance, e sua concludente filosofia da amargura contida: “Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.” A pena da galhofa e da melancolia era apanágio de Brás Cubas? Ri-te! Tristíssimo palhaço, leitor, homem, com a estrela do ideal tão longe, com o cruzeiro de Deus ou da indiferença perdido na imensidão! O riso e o choro se irmanam nessa elegia do homem, cantada com as tintas da galhofa e da melancolia, leitor, meu irmão, tristíssimo e risível palhaço.

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