Estamos na primavera. É inacreditável, mas estamos na primavera. Não parece, os dias continuam feios, cinzas, sem graça. O calendário deve estar errado. Não pode ser. Estamos em plena estação das flores, do verde, da vida, mas um ar triste paira sobre as coisas. O sr. Prefeito tomou a providência anual de enfeitar com coroas de flores os monumentos da cidade; reconheço a boa, ótima intenção, mas o caso é que não convence, é artificial, está nos dizendo que é o primeiro dia da primavera e ninguém vê mudança nenhuma, o estado de espírito é de inverno, dominando, teimoso.
As praias começam a ser procuradas, é verdade, às vezes enchem-se de gente; mas o sol, indeciso, custa a aparecer e não tarda a ir-se embora; mas o vento frio vai e vem, a temperatura cambiante oferta à população o direito à gripe e à melancolia. As ruas exalam mau-cheiro, homens e crianças torcem os narizes; é mais um motivo para fazer cara feia; um constipado pode ser conveniente, evita o contato com o podre, que polui até a alma. Onde está a primavera? Penso em Machado de Assis: “Mudaria o Natal ou mudei eu?” E em Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.”
Falei acima em “estado de espírito”. Pois a primavera é um estado de espírito. Que infelizmente toldou-se de nuvens estranhas. Houve uma mudança, que deve ter sua causa. Primeiro mudam-se os tempos, depois mudam-se as vontades. O problema está no tempo e eu, o meu estado de espírito primaveril, vou encontrá-lo numa longínqua infância que a memória, por um impulso inadvertido, às vezes traz à tona da consciência.
Para mim a primavera é o mato, o cheiro do mato, o orvalho, a terra molhada, o capim amassado, o estrume das vacas. É um mundo primitivo, feito de ingenuidade e força telúrica. Um mundo em que domina a voz de meu pai, gritando com as vacas ou com a chuva. E havia o grande terreiro de café, os passos medidos de meu pai manejando o rastelo e os grãos de café, vermelhos, muito vermelhos, alguns levemente avermelhados, ou verdes, amarelados, quase negros – e eu, menino, agachadinho num canto, um grande cacho de mamona na mão, gozando o espetáculo: era uma festa de cores, e eram as cores da minha primavera. Não me lembro particularmente das flores, embora minha mãe nunca tenha deixado de cultivar os seus jardins; talvez o bom moleque sempre prefira andar atrás dos seus passarinhos, em andanças sem fim, ou das frutas, as gordas jabuticabas, as mangas, as goiabas, os coquinhos... Minha ambição era conseguir trepar ao alto do mais alto coqueiro! E me lembro da quietude das noites, as estrelas e os pirilampos, os morcegos e as corujas, e os vultos dos bois no pasto, os vultos dos coqueiros, árvores, plantações ao longe, mais ao longe morros e casas, os muitos vultos da noite, e o sono, o corpo cansado e satisfeito. E o amanhecer, o frescor saudável das madrugadas, o leite espumante na mangueira, sob o mugido das vacas, pisando o barro vermelho, desviando dos montes de estrume...
Muito depois, mais de vinte anos depois escrevi um poema, e um verso enfatizava “o perfume quente dos estrumes”; meu amigo Heusner Tablas discordava: perfume? Mas eu o sentia assim, e ele tinha que saber: a imagem era boa, sugestiva, e verdadeira, pelo menos para nós, filhos do mato. Tornamo-nos citadinos, trabalhamos com palavras ou números, mas o nosso sentimento, na raiz da nossa intimidade com as coisas, a nossa verdade mais interior está, de qualquer modo, ligada à terra. Não importa que não saibamos expressá-la; nós, mesmo sem percebê-lo, a vivemos. E quando falamos em primavera, observando o simulacro de primavera civilizada na urbe moderna, os olhos voltam-se para o passado, nostalgicamente, dentro de nós.
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