Faleci ontem, pelas sete horas da manhã. Com essas brincalhonas palavras Machado de Assis começa a sua crônica de 12 de fevereiro de 1893. Não resisti à tentação de começar a minha crônica com essas mesmas palavras. Dito e feito, comecei.
E o continuar? Machado continua explicando que foi sonho, e como era carnaval, diverte-se narrando divertidamente como eram as festas de Momo naquele tempo.
Não quero repetir Machado, portanto não repetirei que o meu falecimento foi um sonho. Foi morte real, estiquei com as canelas, bati as botas, vesti o meu pijama de madeira, etc., já não pertenço a este mundo. Apenas escrevo no passado, antes de isso acontecer.
Daqui a um ano e tantos dias e quantas horas, ou dez anos, talvez vinte, quem sabe um pouco mais, feliz da vida, como deve acontecer com os bem-aventurados, e embora eu não seja tão bem-aventurado, deixem-me pensar nessa possibilidade, e assim feliz da vida, como deve ser, irei comer grama pela raiz.
Apenas escrevo no passado. Imagino o dia seguinte, talvez algumas horas após atingir a Bem-Aventurança, quando estarei diante do Bem-Aventurado, vendo a minha imagem glorificada, e não me espantando. Terão terminado todos os espantos.
Li uma croniqueta hoje, uma bela e instigante crônica em suas suficientes quatro linhas. É de Álvaro Moreyra, no seu “As amargas, não...”. Narra nela que São Francisco de Assis tinha um tesouro: um baú com um pedaço de corda, um pouco de trigo e uma pena de passarinho. A corda é a humildade, o trigo era o pão, a pena será a felicidade desta vida voando célere para o céu.
Não precisava de outra imagem para concluir a minha idéia. Não formulei bem minha idéia ainda, mas sei bem qual seja. Faleci ontem de manhã, uma boa hora para se despedir deste mundo maravilhoso – com sua ditas e desditas, mas maravilhoso. E estou às portas do Paraíso. Como disse o apólogo de São Francisco, o vôo é célere.
O narrador da crônica de Machado de Assis também chega ao céu, no sonho lá dele. Encontra na entrada S. Paulo, um encontro de bom alvitre, pois estamos no ano paulino. Machado não estava, mas nós estamos. E S. Paulo, com seus antigos ares de soldado, ordena-lhe que pare. Com que direito entraria no céu?
Também eu sei que não tenho direito nenhum. Depois da morte, essa bobagem com que nos amedrontam, como se fosse um bicho-papão e nós fôssemos criancinhas assustadas, embora o mistério sempre assuste... Depois da morte, que não é o fim, mas uma porta, não há mais tempo. Num átimo, num piscar de olhos, ou antes que pisquem, entramos no âmbito do eterno. Como não tenho direito nenhum, não tenho naturalmente o direito de esperar nada. O que vier é lucro.
O narrador de Machado é despachado por S. Paulo: “ – Adeus, tu és muito falador. O céu é dos grandes silêncios contemplativos.”
Posso ser despachado também à porta do empíreo. Mas por que me desesperar antecipadamente? Não posso mudar a vontade de Deus. Preciso crer que a vontade de Deus é o bem de suas criaturas. Depois, o negócio é calar a boca – porque o céu é dos grandes silêncios contemplativos.
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