sábado, 23 de outubro de 2010

Elegia do fogo



ELEGIA DO FOGO


Com a tocha na mão, saio da caverna

a face gelada como a pedra, o limo a escorrer da face

com o silêncio.


A montanha vai desabar, não restará pedra sobre pedra

nenhuma árvore, vegetação nenhuma

e a água vai se transformar em pedra, em pó

e deslizar sob as ruínas.


Um sino ainda toca, ressoa surdo nas galerias

entre os dentes das pedras.

Ó taciturno, eu digo, a face pálida contra as tochas.


Um gavião grita com o fogo na língua.

Ah, se eu soubesse a verdade.

Ah, se eu soubesse quem me segue encapuzado.

Nunca estou sozinho, sempre o gavião me segue

e o outro, o encapuzado.


Passeio por entre velhos túmulos

ossos despontando na terra revirada

e uma única cruz, enterrada pela metade

um galo sentado num dos braços cantando

cantando desesperado

cantando como se estivesse para morrer.


Tenho a chave na mão

aperto com força a chave na mão até sangrar

mas não encontro a porta.

O barco está longe

o pântano afunda sob meus pés.

Terei deixado os papéis em ordem? Poderei partir?

sem prejuízo, sem agonia, sem multiplicar a morte?


Meu cavalo está morto.

Meu cão está morto.

Minha mão está morta, quase seca.

O fogo me queima os cabelos, os olhos, a língua.

Devo partir?

É chegada a hora?

O mar enlouqueceu

o céu enlouqueceu.

As chamas unem as nuvens e as ondas.

Rodopiam

rodopiam.

É tarde? É a hora? Os gonzos da porta rangem.

E eu que não encontro nenhuma porta.


O galo canta, escorre sangue da garganta

mas canta.


­­­­­­­­­­­­­________


12 comentários:

Gustavo disse...

Muito bom mesmooo... Deu pra refazer cada passo na cabeça. A conexão de palavras é ótima.

Parabéns, poeta!

Carla Farinazzi disse...

Brandão!

Você se supera mesmo a cada texto! Este está sensacional. Consigo enxergar tudo o que escreveu, desenho a desenho. E o final, o sangue escorrendo... e a ideia, perfeita, da morte "Terei deixado os papéis em ordem? Poderei partir?
sem prejuízo, sem agonia, sem multiplicar a morte?"

Lindo demais!

Beijão

Carla

José María Souza Costa disse...

Adorei o seu blog.Adorei a sua verve de escrivinhador.Que legal. Estou lhe convidando a passar pelo meu blog em visita e se possivel seguirmos juntos por eles estarei grato lhe esperando aqui
http://josemariacostaescreveu.blogspot.com

dade amorim disse...

Um texto que fala das intranquilidades da vida e das motivações da morte. Terrível, se nos apanha distraídos.

Beijo

Fátima Guerra (Mellíss) disse...

Brandão

Que ritimo agonizante!
Que delírio de chamas, incendiando os medos.
Suas palavras são joias preciosas.
No meu blog, seus comentários são dádivas que recebo, são raios de sol a me iluminar.
Muito obrigada!
Conte com meu carinho e admiração,

Fátima Guerra

Fátima Guerra (Mellíss) disse...

Brandão

Que ritimo agonizante!
Que delírio de chamas, incendiando os medos.
Suas palavras são joias preciosas.
No meu blog, seus comentários são dádivas que recebo, são raios de sol a me iluminar.
Muito obrigada!
Conte com meu carinho e admiração,

Fátima Guerra

Unknown disse...

José Carlos!

Segui o ritmo alucinante dessa elegia e viajei em cada passo. Uma hora gavião, em outro momento o medo de tudo desabar.

Passei pelo fogo, e entendi o sangue que o galo vomitou ao cantar.

Um poema de tirar o fôlego, que só você seria capaz de fazer.

Com certeza. Com essa magia!

Beijos, POETA!

Mirze

vieira calado disse...

Excelente, o seu poema!

Dá gosto ler poemas assim!

Um forte abraço

Domingos Barroso disse...

Ardoroso poema!
Fogo!
Fogo!

E toda a mansidão do último ai
de uma branda alma
...

Forte abraço,
grandioso poeta
e meu amigo.

Marcantonio disse...

Angustiante, como a querer a transposição de um limite que sempre retorna; ou galgar a escada rolante descendente. Intenso e profundo.

Grande abraço.

Hana disse...

Este lugarsinho é muito bom, aki estou com minha chícara de cha e admirando seu texto, e suas imagens que vaijo junto, divago em fim me transporto, obrigada, aki deixo minha gratidão pelo tempo que aki passei.
com carinho
Hana

Ira Buscacio disse...

José,

Que voraz fogo!
Senti a angústia da morte a rondar minhas orelhas, com seu capuz e silêncio.
É que nunca pensamos nela, mas ela sempre vem e quase sempre não estamos prontos.

Bjs grandes, poeta