quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O muro de Berlim, vinte anos depois

Foto: Flickr - Márcio Nel Cimatti

Berlim, 89-09-11

O homem olha por uma fenda no muro;
os olhos não estão muito abertos, mas veem.
O homem sabe como é a vida do outro lado:
as ideias e os passos vigiados, dia e noite.

O sorriso contido, e o cenho, duro, franzido.
O futuro se esconde sob a névoa cinza;
está muito distante, talvez não exista.
Talvez o homem, nervoso, não saiba sorrir.

Tem a cabeça estrangulada no vão do muro;
um ferro do concreto asfixia-lhe a garganta.
O muro é cinza, todo muro do mundo é cinza;

mas tem um quê de permanência e resiste;
como uma idéia, não quer ruir, desabar.
Como os homens, o muro rui contra a vontade.

Do lado de cá, duas pessoas passam.
Passam, sob os seus grossos capotes,
a cabeça enterrada nos gorros de lã.
Vejo uma parte da cabeça, do gorro,

de uma pessoa; de outra, meio corpo,
a bolsa de mulher a tiracolo, cinzenta.
Não se distingue nem o sexo das pessoas.
São anônimos, passageiros, estrangeiros:

a história é feita de anônimos, como nós.
Nós, que olhamos, somos anônimos.
Não haveria apenas umas três pessoas

diante do muro, mas uma multidão;
estranhos, não se reconhecem; passam.
O muro tira a face e o nome das pessoas.

Uma face na fenda do muro, sem dono:
pertence à história, como a letra cortada;
deve ser R, mas bem pode ser um K,
um K de Kafka, um K absurdo, anônimo.

A letra é uma incógnita: K ou R?
Seria um R da RDA democrática?
Alguma coisa significa esse R ou K?
O muro é signo; a letra, letra morta.

Alguma coisa significa? A face absurda?
Perdi o nome; sou uma incógnita no tempo.
Não sou a multidão em pé diante do muro,

nem as pessoas escondidas, sob feridas,
no anonimato da história, sob o muro
que rui e fica, muro absurdo, só muro.

Bauru, 09-09-11

13 comentários:

nydia bonetti disse...

Temos ainda tantos muros a derrubar... Todos eles sbsurdos.

beijo

Victor Gil disse...

Amigo J. C.
Ontem estive a assistir a um programa de televisão sobre os muros que são precisos derrubar. Afinal, como diz a nossa amiga Nydia, ainda existem muitos muros da vergonha para derrubar. Pena é, que quem criticou tanto o muro de Berlim, seja tão hipócritas, ao ponto de não verem os muros que eles próprio constoiem.
Vamos derrubar os muros.
Um abraço
Victor Gil

Talita Prates disse...

Concordo com a Nydia.
Ótimo poema, poeta.
Bjo.

Marcelo Novaes disse...

Brandão,






"O sorriso contido, e o cenho, duro, franzido.
O futuro se esconde sob a névoa cinza;
está muito distante, talvez não exista".


Esse é um exemplo de destreza rítmica. Há muitos bons momentos nesse belo poema. Não só a pergunta é funda, como também o "como" da pergunta.






Gostei muito.








Abração,








Marcelo.

Edson Bueno de Camargo disse...

A existência do muro foi absurda, sua ausência também. Sinto falta de inimigos que existem de fato, e não de fantasmas que oprimem, sem que o saibamos quem. Sinto falta de ser visível, ao invés de ser castigado pela invisibilidade.

Sonia Schmorantz disse...

Vinte anos...como o tempo passa! Mas há muitos muros a serem derrubados, muito mais perigosos, porque são invisíveis: preconceito, corrupção, violência, etc, etc...
Um abraço

Pedro Luso de Carvalho disse...

Caro Brandão,

Agradeço sua visita ao meu blog e o seu comentário no texto sobre Rilke, poeta que também é de sua predileção.

Acho que todos os poetas, iniciantes ou os que já trilham esse caminho da poesia há muito tempo, deveriam ler com frequência os poemas de Rainer Maria Rilke.

Parabéns pelo seu poema "Muro de Berlim, vinte anos depois".

Um abraço,

Pedro Luso.

Art'palavra disse...

O homem olha por uma fenda no muro;
os olhos não estão muito abertos, mas veem.
O homem sabe como é a vida do outro lado:
as ideias e os passos vigiados, dia e noite.
***

Meu querido mestre Carlos Brandão: sua poesia enhe meus olhos ainda de uma tristeza que parece ter desabado há 20 anos. E apesar das lembranças ruins, os nossos olhos veem a esperança que se constrói contra todos os momentos que tornaram uma nação de tanta gente infeliz; digo, infelizes porque há muito lhe faltaram o direito à liberdade. Este poema toca o meu coração. Paz e bem,
Grauninha

O Neto do Herculano disse...

Saudações poéticas!

Claudia Almeida disse...

Somos DNA jogados a morte!Bjs

Unknown disse...

Lembro-me tão bem! E das expectativas também...

Amei este poema ao muro, aos muros todos.

beijo

BAR DO BARDO disse...

A alma engole a seco!

crispoetisa disse...

ah!!! consegui! gostei dos poemas feito com a tinta do coração visite a minha escrivaninha,bjs
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/crispoetisa