quarta-feira, 15 de setembro de 2010
A pureza do afogado
O afogado
O mar trouxe o corpo à praia.
Era um estrangeiro, jovem e belo.
A boca aberta deixava ouvir,
como se viessem do outro mundo,
as vagas do mar e os gritos brancos das gaivotas.
Eu lhe fechei os olhos, azuis como o céu
através das órbitas de uma caveira.
A sua nudez lhe tornava a pele mais pálida.
Sorria perplexo, como se reconhecesse
num espelho
a nossa estranheza.
Olhando-o, nós sabíamos:
também temos, em vida, o céu nas órbitas
e a morte nas pálpebras.
Pureza
Um barco desliza no lago silente.
É o crepúsculo dos pássaros calmos
e a leve brisa na folhagem transparente.
Anjos inaudíveis cantam salmos,
demônios dormem no fundo abismo.
Hoje não verei a face do afogado.
Sou a nuvem suspensa de uma árvore
e cismo na quietude, cisne dourado.
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O primeiro poema é de 2005; o segundo, de 1985. Mais ou menos vinte anos os separam.
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"Quem escreve um poema salva um afogado." (Mário Quintana)
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Foto na Ponte Metálica, em Fortaleza.
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16 comentários:
Quero te convidar para conhecer meu blog www.odeliriodabruxa.blogspot.com
Gostei muito do seu blog e por isso te sigo.
Abraço
Denise
José Carlos!
Esse Mário Quintana além de poeta era sábio!
Adoro começar o dia por aqui.
O Afogado: um poema que levemente toca no despertar. Fiquei encantada com a visão do céu nas órbitas!!!
Vinte anos de diferença. Poderia ser setenta, e sua poesia é assim. Pura e leve como a natureza.
Um beijo
Mirze
maravilhoso Brandão, sua poesia anda cada dia mais profunda!
Beijos!
Nossa, são incríveis! Adoro poemas com essa intensidade mórbida, mas com uma vivacidade que envolve.
Beijo.
São ambos muito bons poemas. Nota-se um "amadurecimento" no segundo. Mas és um bom poeta. Tens livros publicados?
Um abraço.
Licínia
José Carlos Brandão,
imenso poeta e amigo
dentro da tua caixa de sapato
(mágica) imagino tantos filhos
todos brilhantes
e abissais
do tempo
(atemporal)
...
Forte abraço.
Tem um conto do Gabriel Garcia Marques também sobre o assunto, a poesia é rica neste mergulhar em águas profundas.
a poesia morre com água nos pulmões, e nasce da água com sal.
Poeta,
Um par de poemas asa a asa.
Na praia - pássaro estrangeiro que se afogou.
O barco - uma sua árvore em outras águas.
"[...]temos, em vida, o céu nas órbitas
e a morte nas pálpebras."
Abraço, em esmero.
são belíssimos, belíssimos!
os dois com a intensidade necessária para comover-nos.
a citação de quintana, muito pertinente!
um beijo, poeta.
Belos belos belos. 20 anos entre eles e, no entanto, algo em comum: igualmente intensos.
Caríssimo professor Brandão
Só posso dizer que estar aqui é olhar para o alto, é crescer.
Carinho e admiração,
Fátima Guerra
Adorei o diálogo que você deixa para estabelecer no final entre os dois poemas e a fala de Quintana. Muito bons, todos dois. Você reparou como não parece que foram escritos com distância de tantos anos? A sensibilidade é mesmo atemporal, não? Gostei de conhecer o seu blog, José Carlos.
muito boa a construção poética do afogado, notável o modo como o poema nos dá a ver a nossa irreversível mortalidade, o nosso «ser-para-a-morte», o sempre iminente naufrágio.
grato pela partilha,
filipe
Brandão,
Há uma unidade palpável, quer feche as pálpebras do afogado, quer cisme o cisne.
Belos!
Abração.
Que beleza esses dois poemas, Brandão. Dois momentos, um de confronto, outro de isenção. O afogado que às vezes tiramos do mar de nossas entranhas nos fala dos abismos da criação, da angústia universal, etc.... mas como tuas borboletas na mais recente postagem, precisamos voar, leves, com as asas de nossas metáforas.
Linda a foto de Sônia. Grande abraço.
PURA DIVISÃO DO TEMPO EM BOA POESIA
ABRAÇOS
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