
Foto: Flickr - Márcio Nel Cimatti
Berlim, 89-09-11
O homem olha por uma fenda no muro;
os olhos não estão muito abertos, mas veem.
O homem sabe como é a vida do outro lado:
as ideias e os passos vigiados, dia e noite.
O sorriso contido, e o cenho, duro, franzido.
O futuro se esconde sob a névoa cinza;
está muito distante, talvez não exista.
Talvez o homem, nervoso, não saiba sorrir.
Tem a cabeça estrangulada no vão do muro;
um ferro do concreto asfixia-lhe a garganta.
O muro é cinza, todo muro do mundo é cinza;
mas tem um quê de permanência e resiste;
como uma idéia, não quer ruir, desabar.
Como os homens, o muro rui contra a vontade.
Do lado de cá, duas pessoas passam.
Passam, sob os seus grossos capotes,
a cabeça enterrada nos gorros de lã.
Vejo uma parte da cabeça, do gorro,
de uma pessoa; de outra, meio corpo,
a bolsa de mulher a tiracolo, cinzenta.
Não se distingue nem o sexo das pessoas.
São anônimos, passageiros, estrangeiros:
a história é feita de anônimos, como nós.
Nós, que olhamos, somos anônimos.
Não haveria apenas umas três pessoas
diante do muro, mas uma multidão;
estranhos, não se reconhecem; passam.
O muro tira a face e o nome das pessoas.
Uma face na fenda do muro, sem dono:
pertence à história, como a letra cortada;
deve ser R, mas bem pode ser um K,
um K de Kafka, um K absurdo, anônimo.
A letra é uma incógnita: K ou R?
Seria um R da RDA democrática?
Alguma coisa significa esse R ou K?
O muro é signo; a letra, letra morta.
Alguma coisa significa? A face absurda?
Perdi o nome; sou uma incógnita no tempo.
Não sou a multidão em pé diante do muro,
nem as pessoas escondidas, sob feridas,
no anonimato da história, sob o muro
que rui e fica, muro absurdo, só muro.
Bauru, 09-09-11