No meio da noite
deitado
em decúbito dorsal
como um morto
no escuro
quase líquido de tão escuro
quase me afogando entre os peixes e as estrelas
apagadas
como quem não quer nada
(não queria nada)
eu me descobri mortal
como se já não o soubesse
como se fosse mentira
que vamos todos morrer
e só eu não o soubesse
e como se saber mudasse alguma coisa
na loisa ou lousa (são complicadas as palavras)
do destino
a lua entrava enorme pela janela aberta
entrava a via-láctea com todo o leite das estrelas
apagadas, esfumaçadas, leite feito bruma
no mar-alto baixando dentro de mim
falei Vou morrer
e era como se estivesse morto
não conseguia me mexer
os olhos escorriam pela face
me lembrei da tão bela morte na sua face
mas a minha não poderia estar morta
eu estava morto
embora não me mexesse
um morto se mexe terrivelmente
para cá e para lá, não se aquieta na cova
mesmo que não haja cova
eu estava morto no espelho
mesmo que não houvesse espelho
para eu me ver morto
eu estava morto sobre o mármore de um túmulo
não meu
o dono do túmulo me expulsava
eu queria ir embora
com meus quatrocentos cavalos
mas não me mexia
fora só me descobrir mortal
para estar morto
sobre o mármore inútil
com nenhum pássaro pousado sobre meu cadáver
e o além?
as dúvidas do além-túmulo?
um cadáver repousa quieto como uma árvore sem mar
como uma enxada enferrujada debaixo da escada
como uma pedra quando é mais pedra a
pedra na mesa da sala de visitas
o além-túmulo estava aquém
e eu dormia finalmente
e ressonava ressonava como um morto não ressona
quando me levantei no dia seguinte e me olhei no espelho
não estava lá
mas já não me importava
tinha aprendido a lição de morrer:
um morto cala a boca.
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