segunda-feira, 31 de agosto de 2009

a roda d'água a roda da vida




INTIMIDADE

Entro no espelho
despido.


FARDO

Levo em cada ombro
D. Quixote e Sancho Pança.


CIPRESTES

Caminho ao longo
da alameda de ciprestes
com a morte no bolso.


PAZ

A rosa no altar
e a luz de uma pomba
sobre a pedra sagrada.


O MAESTRO

O velho carvalho
agita os ramos e acorda
o canto dos pássaros.


VÊNUS

Um busto de gesso
no jardim noturno
com o luar nos seios.


ESPELHO

Nas águas do lago
entre o verde das árvores
o universo refletido.


CLARIDADE

Tinha uma gota de orvalho
e uma orquídea nos olhos.


QUASE

No escuro da pedra
o silêncio de Deus.
Quase entrei em êxtase.


BUSCA

O menino perdido
estava agachado dentro
do pé de ameixas pretas.


A RODA D’ÁGUA

Ao sol de setembro
canta a roda d’água
a música da vida.

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sexta-feira, 28 de agosto de 2009

a iluminação no jardim da tarde - poeminhos com sol, suor, sede e sangue



BRISA

A brisa leve
faz cair as pétalas
das flores de cereja.


SEDE

As uvas estão maduras.
Como é grande a sede
do menino ao sol.


VÔO

A árvore enfuna as velas,
no espaço, com as estrelas.


CINZA

As nuvens cinzentas.
O crepúsculo me espera
sob as árvores secas.


DISTÂNCIA

O horizonte ao longe.
É pesado este caminho
que ninguém percorre.


MARTELO

Na forja da tarde
o martelo da araponga.
Uma laranja cai.


SANGUE

Pitanga vermelha
como uma gota de sangue.
Tenho o sol nos olhos.


PÔR-DO-SOL

A lagarta numa pétala
da rosa no galho.


ALTURA

O sol ilumina
a estrada na montanha.
Caminho com orgulho.


FIGO

A menina na cerca.
O sanhaço azul
bica o figo maduro.


ACIDENTE NATURAL

A lagarta caiu da árvore.
Me manchou de verde
o peito vermelho.


CÁLICES

Cálices de flores
gritam no alto dos ipês.
Pássaros pingam mel.


DESCOBERTA DA DOR

A goiaba vermelha.
Queima o braço do menino
uma lagarta de fogo.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

poeminhos para Aníbal Beça, que nos deixou hoje de manhã



deitado sob a árvore
o prisma das folhas
me entrega o universo

o tronco é grave
como o meu avô
dormindo a sua morte

quanto resplendor
o pássaro me traz o sol
nas asas, no canto

tenho estrelas nos olhos
minha estrada é larga
no horizonte de ouro

O silêncio e o pássaro.
O pássaro ia e voltava.
O silêncio, redondo.

A cor dos açafrões.
Giram no vento as folhas
e o grito dos pavões.

Estamos no outono.
O universo se concentra
numa folha seca.

O olhar se quebra.
Estrelas doidas
sobre o caos.

A madeira estrala.
A noite, como um morcego,
pende do telhado.

O raio partiu a árvore ao meio.
Foi como se o universo
tivesse desabado.

O luar penetra
na minha casa quieta.
Os lençóis são brancos.

A maçã repousa na mesa.
Nela pulsa a memória
da macieira.

É leve o meu caminho.
O perfume de uma árvore
me agasalha.

domingo, 23 de agosto de 2009

Nenpuku Sato, poeta visceralmente brasileiro

Dizer “visceralmente” parece exagerado, mas não sou eu quem o diz. Nenpuku Sato traz as vísceras no nome. Chamava-se Kenjiro, e adotou o nome literário Nenpuku – em que “nen” significa “sentir”, e “puku”, “vísceras”: “sentir com as vísceras”.

Chegou ao Brasil em 1927, incumbido por seu mestre Kyoshi de ensinar o haiku aos imigrantes.

Kyoshi era herdeiro de Shiki, o sucessor de Bashô, Buson e Issa. Shiki é responsável pela modernização do haiku, respeitando-lhe a tradição. Contra o que havia de zen em Bashô, aprovando a aproximação com a pintura em Buson, queria um haiku eminentemente literário.

Era essa a lição de Nenpuku: a simplicidade, sem nenhum pedantismo, a pintura com as palavras. Mantendo os princípios técnicos do haiku: um mínimo de 17 sons (pés ou sílabas, para nós) e o kigô, a notação sazonal.

Aí começa a dificuldade. A nossa natureza é diferente da japonesa. Quase não se percebem as estações do ano. Mas quanto mais Nenpuku se integra com a nossa terra, mais a conhece e a torna sua.

Não se pode dizer até que ponto a nossa terra se tornou a terra de Nenpuku, até que ponto ele se tornou brasileiro, mas é certo que sentiu a natureza do Brasil como sua.

Um dos seus mais belos haikus é o da via-látea:



Na trascrição fonética: “Happo ni nagaruru hoshi ya ama no gawa”

Se “ama no gawa” significa “via-látea”, e o poeta queria comparar a “via-látea” a um rio de estrelas, parece-me que uma tradução fiel ao espírito da letra seria esta:

a via-látea
é um rio de estrelas
fluindo suave

Um poema essencialmente poesia.

Outro poema que me chamou a atenção é o da flor do café dominando a cor da paisagem:



“nagare kuru kohii no hana ni sosogi keri”

Que seria mais ou menos:

a flor do café
no rio a roupa lavada
flutua mais branca

Ou então, quando o poeta levanta os seus olhos para o cafezal:



“kohii no haha akari yori ideshi tsuki”

que eu poderia interpretar como:

a lua se inclina
na brancura perfumada
do café em flor

E me lembro dos meus tempos de criança...

Eu sempre tive um certo constrangimento em chamar de haiku ou haikai certos poeminhas meus. Eu não tenho a mentalidade oriental. Sou incapaz de sentir como um japonês. A minha sensibilidade tem uma longa retaguarda greco-latina, ocidental, cristã. Posso fazer poemetos epigramáticos, um pensamento animando um elemento da natureza, as palavras dando forma a uma concepção de mundo milenar, oposta de outra milenar concepção de mundo, vinda do oriente, do Japão.

Mas no fundo estava a terra. No fundo, a mesma dificuldade de Nenpuku Sato. Como sentir a terra do Brasil? Nenpuku abrasileirou-se. Era um lavrador trabalhando a terra, com o seu suor, que a tornou sua.

Por que os haikus do café me chamaram particularmente a atenção? Eu fui criado numa fazenda de café. Eis tudo. Usei e abusei na minha poesia do sintagma “verde e vermelho”. Num poema dedicado a Mário de Andrade, deixei escapar um “verde e vermelho”, e um amigo (cheio de boas intenções) viu no “vermelho” uma alusão ao comunismo de Mário (que não era comunista). Só faltou ver no “verde” qualquer absurda alusão ao integralismo de não sei quem. O verde e vermelho que colore a minha poesia é a cor da minha terra – interior de São Paulo, terra vermelha – e o verde da natureza, dos cafezais da minha infância.

Faltou falar no branco dos cafeeiros, de que Nenpuku Sato, um japonês, vem me lembrar. As flores brancas e perfumadas dos cafeeiros. Aquele verde e vermelho do café nos pés de café, e depois nos terreiros de café brilhando ao sol, e o branco perfumado das suas flores, eram a maior maravilha do mundo. A minha memória afetiva vibra com mil sensações.

Esse verde e vermelho, e esse perfume branco, não caberiam num haiku?

Nenpuku Sato não foi receber a comenda que o imperador do Japão lhe ofereceu. Talvez porque estava muito longe e velho, já fora do Japão há mais de 50 anos. Talvez porque se sentisse brasileiro. Os japoneses que para cá vieram, seus filhos e netos, já eram brasileiros. Talvez visceralmente brasileiros. Não usamos essa expressão, “visceralmente”, para dizermos profundamente, com todo o corpo, alma e espírito, integralmente? Nenpuku escolheu-a quando escolheu seu nome, de poeta até às vísceras.

Dia 22 de outubro fará vinte anos que Nenpuku Sato faleceu, em Bauru, no Brasil, deixando aqui as suas raízes brasileiras.

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Texto-base: Trilha forrada de folhas - Nenpuku Sato / Um mestre de Haikai no Brasil, Maurício Arruda Mendonça, Edições Ciência do Acidente, São Paulo, 1999.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O estranho matou os pássaros



O estranho matou os pássaros com um martelo.
Eu o tranquei no fundo calabouço.
Estava vestido de penas, nuvens e espumas,
Sonhava no seu leito de pregos com o paraíso.

Os mortos sabem as palavras cifradas,
A chave rolou para o fundo do poço.
O estranho se dizia possuído dos dons do espírito,
Mas trazia a morte na ponta dos dedos

E o seu sopro era seco como o pó dos sepulcros.
O céu veio abaixo, arrebentou o seu peito.
Restam as cinzas dos delírios sobre as pedras,
Mas a sua visão ainda incendeia as estrelas.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

mundo haiku



Entre os verdes caniços
o arco-íris sorri.

Saltita no fio
o passarinho vermelho
rindo de mim.

A gota de orvalho
no cálice róseo
da flor do ipê.

À beira da estrada
é mais bela a paisagem.

Tinha uma pedra na mão,
voaram dois pássaros
da alma.

O gato preto sonolento
ronrona como um besouro.

O tiê-sangue
respinga sangue
nos meus olhos.

A imagem do pássaro
voa como o pássaro.

A flor do ipê
é um cálice de luz
na manhã.

A flor-cálice de luz
do ipê
multiplicada.

O gato me olhou
com os olhos verdes
como a paisagem.

O canto do pássaro
inventa o pássaro.

O pássaro é o coração
da árvore.

O poema é natural.
A árvore, sobrenatural.



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A foto do arco-íris é minha.
A do tiê-sangue, no voo, mágica, é da Sônia.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

algum haiku



A libélula beija a água
com os dois olhos abertos.

Descanso na clareira.
O esquilo de cauda no ar
voa na floresta.

À beira da estrada
o homem parado
é paisagem.

O sol pesa no céu.
Uma estrela de fogo
na cabeça da serpente.

A gaivota beija o mar
inventa um peixe no bico
brilho de sal e sol.

Uma estrela cai no banhado
as rãs coaxam
os juncos tremem no escuro.

Os meninos e as abelhas
sonham o mel
das pitangueiras vermelhas.

O grito do quero-quero
desperta o banhado.
O capim cintila em festa.

A lua sobre a mesa
e as estrelas no chão
da casa na floresta.

O monte de lenha.
Um grilo no escuro
tece redes de estrelas.

Flores de água brilham
na superfície do lago.
Tudo é calmo e limpo.

Olhar uma árvore
é multiplicar o olhar.

sábado, 8 de agosto de 2009

para o dia dos pais




OS GALOS

O galo debulha a espiga da manhã.
Seu grito trepa as árvores,
o chifre das vacas, as esporas do meu pai.
O velho calça as polainas, amola a faca na pedra negra,

enfia na bainha, na cinta.
Bate o isqueiro de pederneira, acende o cigarro
e monta com um grito na garganta.
Como um galo.

Meu pai e o galo debulham o milho da manhã.
O dia trepa no terreiro,
na invernada,
com o gado mugindo,

soberbo,
único,
para os galos.


JACARANDÁ

Nesta colina está enterrado meu pai:
Emudeceu à sombra de um jacarandá.
Sua voz estrondava, dominava o mundo.
Apagou-se na fumaça do entardecer.

Que noite podre se abaixou sobre nós
Quando se foi o dono da terra, o senhor.
O pasto, a roça, o mato, os bichos existiam
Na sua voz, que é cinza escura dormindo.

Nós todos existíamos na sua voz.
Perdemos a noção de ser no mundo:
Estar, simplesmente, como os bichos estão.

Um homem existe plantado na terra
Ou é nada. Nós sabemos, mas essa verdade
Emudeceu à sombra do jacarandá.

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Foto de Trevor Hart - Flickr

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

ai, cai - para o alto



A areia da praia.
O menino exibe ao sol
um peixe de luz.

A lua entre as pedras
faz cair da montanha
uma avalanche.

Um beija-flor azul
mergulha de repente
por meus olhos a dentro.

Um pássaro num sino
na alta montanha
tange as nuvens.

A pétala na água.
A aranha desce da árvore
na réstia do sol.

A flor negra na parede
da casa branca na praia.
Uma gaivota morta.

Os cravos rosados
na água brilhante de um jarro.
O dia claro é simples.

Venha beijar comigo
o orvalho dos nenúfares.
Do alto a baitaca abençoa.

Bebe de meus lábios,
na clara luz da manhã,
o êxtase do olhar.

Entre as folhas verdes
o canto do pássaro
inventa o pássaro.

Saboreio a amora roxa.
Todo se acabaria
se eu não cantasse.

Um pássaro de ouro
canta na palmeira.
Queimam as penas ao sol.

Delírio.
O lago reflete
o incêndio de um lírio.

As cerejeiras em flor.
Contemplo encantado
uma abelha.

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A ilustração é o projeto do cartaz para a exposição
do aniversário dos 10 anos do grupo Expressão Poética, no Centro de Cultura de Bauru. Por isso o nº 10 ano centro da paisagem.
E apenas alguns haicais.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O céu no espelho



Olho o céu no espelho, azul, terrível.
Era a face de Deus multiplicada
e alheia à minha humanidade frágil.
Quem sou eu? Quem verei, talvez, no espelho?

No cristal vejo Deus, que não me vê,
alheio no alto azul, distante e frio.
Por que vejo, no espelho, Deus estranho?
Serei eu, gralha gritalhona, o estranho?

Quebro o espelho. Não quero a minha imagem
compartilhar com Deus. Quero os meus cacos
no chão ensanguentado, com as flores

inúteis, como a minha poesia.
Se Deus não me responde, quebro Deus.
O céu em chamas queima-me num sopro.