domingo, 23 de agosto de 2009

Nenpuku Sato, poeta visceralmente brasileiro

Dizer “visceralmente” parece exagerado, mas não sou eu quem o diz. Nenpuku Sato traz as vísceras no nome. Chamava-se Kenjiro, e adotou o nome literário Nenpuku – em que “nen” significa “sentir”, e “puku”, “vísceras”: “sentir com as vísceras”.

Chegou ao Brasil em 1927, incumbido por seu mestre Kyoshi de ensinar o haiku aos imigrantes.

Kyoshi era herdeiro de Shiki, o sucessor de Bashô, Buson e Issa. Shiki é responsável pela modernização do haiku, respeitando-lhe a tradição. Contra o que havia de zen em Bashô, aprovando a aproximação com a pintura em Buson, queria um haiku eminentemente literário.

Era essa a lição de Nenpuku: a simplicidade, sem nenhum pedantismo, a pintura com as palavras. Mantendo os princípios técnicos do haiku: um mínimo de 17 sons (pés ou sílabas, para nós) e o kigô, a notação sazonal.

Aí começa a dificuldade. A nossa natureza é diferente da japonesa. Quase não se percebem as estações do ano. Mas quanto mais Nenpuku se integra com a nossa terra, mais a conhece e a torna sua.

Não se pode dizer até que ponto a nossa terra se tornou a terra de Nenpuku, até que ponto ele se tornou brasileiro, mas é certo que sentiu a natureza do Brasil como sua.

Um dos seus mais belos haikus é o da via-látea:



Na trascrição fonética: “Happo ni nagaruru hoshi ya ama no gawa”

Se “ama no gawa” significa “via-látea”, e o poeta queria comparar a “via-látea” a um rio de estrelas, parece-me que uma tradução fiel ao espírito da letra seria esta:

a via-látea
é um rio de estrelas
fluindo suave

Um poema essencialmente poesia.

Outro poema que me chamou a atenção é o da flor do café dominando a cor da paisagem:



“nagare kuru kohii no hana ni sosogi keri”

Que seria mais ou menos:

a flor do café
no rio a roupa lavada
flutua mais branca

Ou então, quando o poeta levanta os seus olhos para o cafezal:



“kohii no haha akari yori ideshi tsuki”

que eu poderia interpretar como:

a lua se inclina
na brancura perfumada
do café em flor

E me lembro dos meus tempos de criança...

Eu sempre tive um certo constrangimento em chamar de haiku ou haikai certos poeminhas meus. Eu não tenho a mentalidade oriental. Sou incapaz de sentir como um japonês. A minha sensibilidade tem uma longa retaguarda greco-latina, ocidental, cristã. Posso fazer poemetos epigramáticos, um pensamento animando um elemento da natureza, as palavras dando forma a uma concepção de mundo milenar, oposta de outra milenar concepção de mundo, vinda do oriente, do Japão.

Mas no fundo estava a terra. No fundo, a mesma dificuldade de Nenpuku Sato. Como sentir a terra do Brasil? Nenpuku abrasileirou-se. Era um lavrador trabalhando a terra, com o seu suor, que a tornou sua.

Por que os haikus do café me chamaram particularmente a atenção? Eu fui criado numa fazenda de café. Eis tudo. Usei e abusei na minha poesia do sintagma “verde e vermelho”. Num poema dedicado a Mário de Andrade, deixei escapar um “verde e vermelho”, e um amigo (cheio de boas intenções) viu no “vermelho” uma alusão ao comunismo de Mário (que não era comunista). Só faltou ver no “verde” qualquer absurda alusão ao integralismo de não sei quem. O verde e vermelho que colore a minha poesia é a cor da minha terra – interior de São Paulo, terra vermelha – e o verde da natureza, dos cafezais da minha infância.

Faltou falar no branco dos cafeeiros, de que Nenpuku Sato, um japonês, vem me lembrar. As flores brancas e perfumadas dos cafeeiros. Aquele verde e vermelho do café nos pés de café, e depois nos terreiros de café brilhando ao sol, e o branco perfumado das suas flores, eram a maior maravilha do mundo. A minha memória afetiva vibra com mil sensações.

Esse verde e vermelho, e esse perfume branco, não caberiam num haiku?

Nenpuku Sato não foi receber a comenda que o imperador do Japão lhe ofereceu. Talvez porque estava muito longe e velho, já fora do Japão há mais de 50 anos. Talvez porque se sentisse brasileiro. Os japoneses que para cá vieram, seus filhos e netos, já eram brasileiros. Talvez visceralmente brasileiros. Não usamos essa expressão, “visceralmente”, para dizermos profundamente, com todo o corpo, alma e espírito, integralmente? Nenpuku escolheu-a quando escolheu seu nome, de poeta até às vísceras.

Dia 22 de outubro fará vinte anos que Nenpuku Sato faleceu, em Bauru, no Brasil, deixando aqui as suas raízes brasileiras.

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Texto-base: Trilha forrada de folhas - Nenpuku Sato / Um mestre de Haikai no Brasil, Maurício Arruda Mendonça, Edições Ciência do Acidente, São Paulo, 1999.

7 comentários:

Unknown disse...

Obrigada por esta digressão por um poeta que não conhecia.

Abraço

BAR DO BARDO disse...

... boa dica, lembrança, homenagem...

Adriana Godoy disse...

Olha, adorei sua aula sobre Nenpuku. Conhecia de nome alguns hai-kais, mas não sabia tantos detalhes de sua vida e obra. Parabéns, JC, é sempre bom saber certas coisas. Beijo.
"a lua se inclina
na brancura perfumada
do café em flor" beleza pura.

Fernando Campanella disse...

Muito lindo o texto, Brandão. Informação com o toque de uma maravilhosa sensibilidade, a alma do poeta escapando, visceral, do texto. E que linda homenagem ao mestre, e aos poetas da natureza, em geral. Parabéns, o texto me encantou. Grande abraço.

nydia bonetti disse...

que belo poeta brandão, e que belo texto. amei os haicais. boa semana!

Cristina Fernandes disse...

Uma aprendizagem dum poeta que desconhecia. Tantos segredos por descobrir nas palavras...
Abraço
Chris

cristinasiqueira disse...

Quanta maravilha em teu blog azul.
E que formidável simbiose de Nenpuku com a terra nossa que se fez tão dele.

Gostei muito.

Com admiração,

Cris

E o convido a visitar www.cristinasiqueira.blogspot.com