quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Poema da tarde de dor vestida


 

                     Poema da tarde de dor vestida



A tarde gemia sob os arreios, sob as esporas nas ancas e o freio comendo a boca. Um lençol veio de manso num cesto de vime e cobriu de morte a tarde. A tarde é uma égua sem lua, relincha no descampado com o algodão da morte nas ventas.
A guasca do vento semeia chumbo no lombo da tarde, vergasta o ventre sofrido o dedo de uma estrela raivosa. A unha de onça em brasa nas tetas gordas da tarde. Um chifre vara a coxa, a penugem do pulmão pequeno, de pomba, da tarde.
O relógio enlouquece com o espinho do silêncio no coração pequeno. A língua sangrenta da tarde na coivara da agonia. A tarde de dor vestida, com um relógio de ouro na argola das ventas. O relógio louco rumina o tempo numa baba de estrume fervente. O relógio não sai do lugar, na argola das ventas, na nuvem verde do estrume.
A rosa de luto se despe, pétalas de carne fremem. O pasto agoniza com a gangrena as virilhas comendo, a mata queima no aceiro do sol estripado pela seda verde. A guampa chama a lua, chama a lua a árvore debruçada no ribeirão. A água reflete sombra funda como um relógio morto.
Tempo terrível de um vaga-lume só. Ai tempo morto de um vaga-lume só.


             (poema em prosa de 1990)





Nenhum comentário: