https://cronicascariocas.com/maria-quiteria/
Maria Quitéria
Boca aberta, torta para um lado, os olhos para o outro, parados na morte.
“Não faça isso comigo. Volte, Paizinho.”
Olha para a esquerda, vesgo na eternidade.
“Paizinho, eu prometo ser boazinha. Eu faço tudo.”
A ponta da língua no canto da boca, quer sair. O safado.
“Eu prometo, Paizinho. Nem na igreja, nunca mais.”
– Na igreja, eu sei. Dava para o padre.
– Olha, parece que vai rir. Morto mais sacana.
– Perseguia a filha em tudo quanto era canto.
– É. No bar, eu vi erguendo o vestido. A mão na bunda.
– Boazuda, a Quitéria.
– Boa moça. Trabalhadeira. Vivia na igreja.
– Verdade que andava com o padre?
– Bobagem. Andava é fugindo do pai.
De mãos postas no centro do tapete, se faz de santo. O revólver do lado. As mãos rezando, debaixo o buraco da bala.
“Eu não queria, juro que eu não queria. Você disse: Atira.”
– O revólver não tinha bala. Decerto pensou que o revólver não tinha bala.
– O diabo atenta, minha mãe dizia.
– Um tiro só, bastou um, na barriga, e puf! O diabo murchou, se apagou.
– Até soltava fumaça, tanto que bufava.
– Está virando os olhos, está virando os olhos.
– Que nada. Esse está longe, com os anjos e os santos.
– Ou com os diabos amigos dele.
“Paizinho, que eu faço da minha vida? Se o revólver tivesse mais bala, eu me matava.”
– Não é uma lágrima que cai do olho?
“Aguinha azul, vontade de beijar, beber essa aguinha da morte.”
– Deve ser azul, a morte.
– É negra. Preta que nem um urubu, um morcego.
– Que frio! Um gelo o coração.
– Um morcego te chupando o sangue. Só fica essa aguinha azul, morcego não gosta.
“Pai, e se eu me enforcar? Tem uma corda na cozinha.”
– O vestido rasgado, que vergonha! Não é um seio de fora? E esses dois lambendo carniça? Os dois, o contista bisbilhoteiro.
“Feito louca pela casa. Tenho as mãos manchadas de sangue. Quero morrer, quero morrer.”
“Você foi-se embora, Paizinho, por quê? Não dá para entender. Queria me violentar? O revólver estava tão pesado!”
“Atira, sua cadela.”
“Eu atirei, o revólver pesado.”
Não tinha bala? Umazinha só, esquecida no tambor. A bala que o diabo pôs lá.

Nenhum comentário:
Postar um comentário