Foto: Tânia Rêgo Agência Brasil
Somem tantas pessoas anualmente
Pela última vez e em nome de Deus
DESAPARECIMENTO DE
AMARILDO SEM PORTO
D’Après
Carlos Drummond de Andrade
“O
tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e espera.”
Pede-se
a quem souber
do
paradeiro de Amarildo
avise
sua residência,
um
barraco na Rocinha
com
a mulher e seis filhos
órfãos
antes do tempo,
agora
sem tempo nem para chorar
e
outras atividades básicas
da
pobreza quase indigência.
Pede-se a quem avistar
Pede-se a quem avistar
Amarildo
de Souza, de 42 anos,
que
nunca ultrapassou a linha da pobreza,
vivendo
num lugar chamado Pocinho,
área
dominada pelo tráfico
com
esgoto a céu aberto
e
muitos casos de tuberculose,
pede-se
que dê notícias
–
porque um homem desaparecido
é
pior do que um homem morto.
Roga-se
ao bom povo desta cidade
que
tome em consideração o caso desta família
digno
de simpatia especial.
Amarildo
era um homem bom.
Saiu
para trazer comida,
tinha
sete bocas em casa para alimentar.
Saiu.
Não voltou.
Levava
pouco dinheiro no bolso,
talvez
nem levasse dinheiro.
(Procurem
Amarildo.)
Não
costumava demorar.
(Procurem
Amarildo.)
Só
pensava na família.
(Procurem.
Procurem.)
Faz
uma falta dos diabos.
Se,
todavia, não o encontrarem
nem
por isso deixem de procurar
com
obstinação e confiança que Deus sempre recompensa
e
talvez encontrem.
A
mulher não perde a esperança,
os
filhos não perdem a esperança.
Os
seus amigos ou conhecidos não sabem notícia nenhuma,
limitando-se
a responder: Não sei.
O
que não deixa de ser esquisito.
Somem tantas pessoas anualmente
numa
cidade como o Rio de janeiro
que
talvez Amarildo jamais seja encontrado.
Foi
levado pela polícia
para
um simples interrogatório,
no dia 14 de julho
deste ano,
dia da Revolução
Francesa,
mas ele não sabia
disso,
ele não sabia quase
nada,
ele que nunca fez
nada,
ele que fazia tão
pouco,
era só um ajudante
de pedreiro
e ganhava só uns
300 reais por mês
insuficientes para
alimentar a mulher e os seis filhos.
Afirma a polícia
que foi solto,
de pronto,
mas nunca chegou em
casa
e Elisabete e os
seis filhos choram a orfandade
– o pai com destino
incerto e não sabido.
Onde está Amarildo?
clama a nação, mas
não tem resposta não.
A vida é cheia de
enigmas,
Amarildo é apenas
mais um.
Apenas, mas quantas
penas.
Pela última vez e em nome de Deus
todo-poderoso
e cheio de misericórdia
procurem
Amarildo, procurem
esse
homem jovem e pobre de nome tão original
e
de pobreza sem nenhuma originalidade.
Esqueçam
a luta política, o mensalão e os mensalinhos,
ponham
de lado preocupações comerciais,
percam
um pouco de tempo indagando,
inquirindo,
remexendo.
Não
se arrependerão. Não
há
gratificação maior do que o sorriso de Elisabete,
a
mãe em festa com os seis filhos nas costas,
e
a paz intima
consequente
às boas e desinteressadas ações,
puro
orvalho da alma.
Não me venham dizer que Amarildo suicidou-se,
Não me venham dizer que Amarildo suicidou-se,
fugiu com outra
mulher,
foi morto pelos
bandidos do tráfico,
caiu no esgoto do
Pocinho onde mora
(ou morava, que
agora Amarildo é pura hipótese).
Ele não se matou.
Procurem-no.
Tampouco foi vítima
de desastre
que a polícia
ignora
e os jornais não
deram.
Está vivo para
consolo de uma esposa infeliz
e
triunfo geral do amor dos filhos
e
dos irmãos infelizes. (Somos todos irmãos na dor.)
A qualquer hora do
dia ou da noite
quem o encontrar
avise no Pocinho da Rocinha.
Talvez Elisabete
nem esteja mais lá,
expulsa pelo medo e
pela miséria.
Mas o recado se
espalhará como fogo na palha seca
e alguém tomará
providências.
Mas
se acharem que a sorte
dos povos é mais importante
e que não devemos
atentar nas dores individuais,
se fecharem ouvidos
a este apelo de campainha,
não faz mal,
insultem a mulher de Amarildo,
virem a página:
Deus terá compaixão
da abandonada e do ausente.
Deus dirá a
Elisabete:
Vai,
abraça o teu marido,
beija-o e fecha-o para sempre em teu coração.
Ou talvez não seja
preciso esse favor divino.
A mulher de
Amarildo (somos pecadores)
sabe-se indigna de
tamanha graça.
E resta a espera, que
sempre é um dom.
Sim, os extraviados
um dia regressam
— ou nunca, ou pode
ser, ou ontem.
E de pensar realizamos.
Quer apenas seu
homem
com quem se casou
numa tarde remota
e para quem agora
só oferece uma lágrima já seca.
Já não interessa a
descrição do corpo,
nenhuma fotografia
é suficiente,
disfarces de
realidade mais intensa
e que anúncio algum
proverá.
Cessem pesquisas,
rádios, calai-vos·
Calma de flores
abrindo
no canteiro azul
onde desabrocha a
vida infeliz de Amarildo
intata nos tempos.
E de sentir
compreendemos.
Já não adianta
procurar
o seu homem
Amarildo
que a vida, a política,
a polícia, o tráfico ou Deus
inapelavelmente
levaram.
José Carlos Brandão
De
Metamorfoses de Ofídio – paráfrases e paródias extemporâneas
Paráfrase
de “Desaparecimento de Luísa Porto”, de Drummond editado pela 1ª vez em “Poesia
até agora”, de 1948.
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