João Pincke sobe a colina do Cemitério da Saudade com as costas curvadas. Os pedreiros e carpinteiros ainda estão construindo o cemitério: os muros altos, os dois portões, as ruas onde se alinharão os túmulos, um oratório com uma torre encimada por uma cruz de bronze, onde se rezará a missa de inauguração e onde se abrirá a primeira sepultura.
João Pincke conversa com os carpinteiros e pedreiros, pergunta, insiste, e eles respondem que não, fazem muitos gestos negativos com a cabeça. Respondem às perguntas do outro, gentilmente, como se não tivessem nada mais a fazer no mundo.
A mulher no sopé do morro, invisível quase, na distância, toda tarde vê com pouco caso o marido subindo a encosta, e resmunga: Oras! O homem sumia-se na entrada do cemitério, com a sua corcunda de maldades, e tanto fazia que voltasse ou não voltasse. O homem sumia-se, com a sua esquisitice, e logo estaria de volta para continuar com a esquisitice de todo dia.
João Pincke dava as costas à cidade, que crescia ao léu, e subia a encosta de alma leve: levava cada vez menos peso, logo estaria livre. A mulher olhava-o, burro de carga empacando na subida, e dava de ombros: Mais dia, menos dia, empaca de vez. E os dias passavam-se, um depois do outro, o homem subindo a estrada de areia branca, cada vez mais pesada, embora de alma leve, e a mulher respondendo-lhe com um muxoxo: Oras!
João Pincke doara o terreno para ser construído o cemitério da cidade e, como bom zelador de sua doação, todos os dias ia verificar as obras, e perguntava se estava pronto. Era o que se pensava.
Na centésima ou centésima primeira subida, tinham sido uns cem dias, os pedreiros atrapalhando-se ainda com a massa e com as pás e as enxadas e os tijolos, os malditos tijolos, esfregaram as mãos, satisfeitos: Está pronto o cemitério.
Foi como a sentença final do juiz, a condenação: Enforque-se. Estava lavrada a sentença, não havia escapatória. João Pincke, no alto do morro, olha a cidade pela última vez. Estava imerso em sua solidão. Um homem e o universo. Um homem e o seu destino.
A corda no pescoço, o peso do corpo, o vácuo, a dor, uma dor enorme, sufocando, como se o peito fosse arrebentar; depois, a ausência da dor; e, enfim, mais nada.
A imagem do homem enforcado à luz da lua, no portal do cemitério. O olho aberto refletindo a primeira estrela; o outro, vazado, escorrendo pela face dura. Mostrando a língua para a cidade que o recebera e iria repeli-lo, como a um filho indigno.
Olha a cidade com um olho só, e não se poderia saber se era esse olho que chorava, ou o outro.
Sempre alguém chora por nós; nunca se sabe. À direita de quem entra pelo portão principal do Cemitério da Saudade, o mais antigo da nossa cidade, a doze passos bem medidos, entre a primeira e a segunda ruas de túmulos, está uma pequena construção muito antiga, um oratório encimado por uma cruz de bronze. Na soleira, em letras mal legíveis, está escrito: “João Pincke – 26/06/1908 – Saudades de sua esposa”.
Um homem sempre merece, pelo menos, as lágrimas da morte. Talvez a mulher tenha sentido um alívio com a morte do marido; talvez tenha chorado lágrimas verdadeiras; talvez um sentimento de pesar, de uma mágoa sem remédio a tenha levado a mandar escrever aquelas palavras: “Saudades de sua esposa”.
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