segunda-feira, 30 de junho de 2014

NO MEIO DA RUA







NO MEIO DA RUA


Tinha uma flor no meio da rua
Tinha um pássaro morto no meio da rua
Tinha uma borboleta sobre a flor no meio da rua
Tinha um carreiro de formigas devorando o pássaro no meio da rua
Tinha uma abelha disputando a flor com a borboleta no meio da rua
Tinha uma menina olhando o pássaro morto e a flor no meio da rua
Tinha um velho olhando a menina e o pássaro e a flor no meio da rua
Tinha uma mulher no meio da rua
Tinha um besouro azul no meio da rua
Tinha uma mosca azul no meio da rua
Tinha uma libélula azul no meio da rua
Tinha uma barata morta no meio da rua
Tinha um homem distraído no meio da rua
Tinha um poeta e suas memórias distraídas no meio da rua

 








sábado, 21 de junho de 2014

À BEIRA DO CAOS







À BEIRA DO CAOS


O corredor era interminável
Uma luz bruxuleava no fundo, entre as sombras
Vultos escuros dançavam inquietos
Ao longe ouvia-se um sino
Ao longe ouvia-se um coração
Ouvia-se um cavalo
Ouviam-se tanques de guerra
Casas caíam destroçadas
O teu peito mal palpitava, à beira do caos.







terça-feira, 10 de junho de 2014

O OBJETO DA POESIA






O OBJETO DA POESIA


O absurdo explica a poesia e a vida
Motivo por que poesia e vida são uma e a mesma coisa
A lógica cabe e não cabe na sua definição
A vida prescinde a percepção das coisas
A percepção de um objeto não é o objeto da poesia





segunda-feira, 9 de junho de 2014

SONETO PROVERBIAL







SONETO PROVERBIAL


Deus dá o frio conforme o comedor.
Glórias passadas não movem moinho.
O último a sair feche os olhos do morto.
Quem não tem cão, caça com o do vizinho.

Em casa de ferreiro, espeto de picanha.
Água mole, pedra dura tanto bate até que vai embora.
Mais vale um pássaro na mão do que dois na manga.
Atirou no que viu, matou a sogra.

Quem tem telhado de vidro não anda nu em casa.
Macaco velho não põe a mão em bunda feia.
Nos menores frascos, os melhores fiascos.

Atire a primeira merda quem não for cagão.
Depois da tempestade, vem a choradeira.
Manda quem pode, obedece quem é bundão.








domingo, 8 de junho de 2014

ESPÍRITO PARÁCLITO - Jorge de Lima

ESPÍRITO PARÁCLITO
Jorge de Lima

QUEIMA-ME Língua de Fogo!
Sopra depois sobre as achas incendiadas
e espalha-as pelo mundo
para que a tua chama se propague!
Transforma-me em tuas brasas
para que eu queime também como tu queimas,
para que eu marque também como tu marcas!
Esfacela-me com tua tempestade,
Espírito violento e dulcíssimo,
e recompõe-me quando quiseres,
e cega-me para que os prodígios de Deus se realizem,
e ilumina-me para que tua glória se irradie!
Espírito, tu que és a boca de todas as sentenças,
toca-me para que os meus irmãos desconhecidos e longínquos e estranhos

compreendam a minha fala para todos os ouvidos que criares!
Exceder-me-ei em meus limites,
crescerei em todas as distâncias,
serei a palavra transcendente, a profecia, a revelação e as realidades!
Devora-me, renova-me, ressurge-me em tua vontade criadora
diante da morte e diante do nada!
Aguça a minha intuição,
descansa m minhas pupilas,
agita a minha lentidão,
faze-me numeroso como tu,
cobre todo o meu corpo de pálpebras que espreitem todas as latitudes e longitudes
e expectativas e anunciações e partos e concepções
e gerações e séculos de séculos!
Ressurgirei de todos os ventres
e voarei no sentido da perpetuidade sobre as águas e sobre as terras!
Desata-me Espírito Paráclito! Corta os meus laços,
sopra a terra que há sobre a minha sepultura!
Enche-me de tua verdade e sagra-me teu moderno apóstolo!
Amo como poeta a forma com que te apresentaste
à assembleia do Cenáculo!
E sinto a tua presença,
a tua aproximação, a tua unção sobre a minha alma!
Dá-me tua fecundidade sobrenatural,
tua heroicidade e tua luz!
Unge-me teu sacerdote,
teu soldado, teu vinho, teu pão,
tua semente, tuas perspectivas!
Espírito Paráclito, dedo da direita do Pai,
soergue as minhas pálpebras descidas e sopra sobre elas o teu hálito e tua essência!
Espírito Paráclito, amo-te, com os meus cinco sentidos,
com a minha imaginação,
com a minha memória e com os outros dons poéticos e proféticos e reconstituidores
que ultrapassam minha espessa matéria e meu espírito translúcido!

Sou teu ramo de oliveira que trazes dos dilúvios constantes da humanidade
e cujo óleo ungirá os meus iguais e os desiguais do meu tamanho!

Espírito Paráclito, tu que és o único pássaro que desce sobre mim na minha noite untuosa,
fura os meus olhos para que eu veja mais,
para que eu penetre a unidade que tu és,
a liberdade que tu és,
a multiplicidade que tu és,
para eu subir da minha pequenez e me abater em ti!

(A Túnica Inconsútil, 1938)