sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A árvore da infância


 

A árvore da infância

 

O pasto do boi bravo e a cerca de arame farpado que rasgou a perna do menino. A vaca Moela e o bezerro Bito babujam o sonho sonhado da infância até agora. O ribeirão não tinha peixes, tinha lágrimas na areia e nos espinhos do barranco, onde um pé de cabeça-de-negro se dependurava. A morte sorria como uma orquídea no alto de um jacarandá. A esmeralda brilhava numa pétala de sol.

No fundo do poço, a minha face – degolada pela guilhotina do espelho do tempo, a minha face vai e vem, vem e vai continuamente como um pêndulo sem fim. Os cavalos, no alto das patas traseiras, relinchavam. Traziam o sol nas patas e relinchavam. O monjolo marcava o tempo na água, o moinho moía a farinha e os galos. O canto dos pássaros bordava o dia. O arado tombava a carne da terra, as sementes sorriam prenunciando a flor e a espiga.

A noite me embalava na copa da figueira, longe os latidos dos cães loucos (o lobisomem ao pé da porteira). Eu me aconchegava no seio da lua, como no embalo de uma rede, e sonhava (um sonho que vem até agora). Os cabelos do menino cresciam sob a relva, o menino enterrado com as formigas. Os grilos brigavam com os vaga-lumes entre os coqueiros. As estrelas caíam com o sereno. O leite da madrugada era doce como a vaca Moela, o bezerro Bito mamava com sofreguidão (a Moela e o Bito, eu me dizia, sabem o meu nome).

O tempo escorre dos cabelos do meu avô (que morreu com noventa e dois anos de idade,  depois de muitos relógios quebrados). Um minuto basta para acariciar o cachorro ou para morrer – e continuar, no tempo, a mão no pelo do cachorro, na morte prolongando a vida. Abertas as comportas das águas do sol, o pasto transborda de luz. Eu tive uma égua, eu tive uma vaca e um bezerro – tombaram da árvore dos dias. Na roseira do êxtase, um pássaro cantava. O mel inundava o pomar tranquilo. Eu sonhava. No quarto, na varanda, no alto do telhado eu sonhava.

Da janela eu vejo: pombos caem do céu. A infância era azul, sem lápides. Os guizos da cascavel me encantavam. Nos ladrilhos quadriculados da varanda os soldadinhos de chumbo marchavam (eram inocentes as guerras de outrora: ninguém morria, ninguém matava). No jardim os gerânios vermelhos dançavam, os copos-de-leite cochilavam. Os sabiás empurram as raízes da paisagem para agora. Meu sonho navega no mesmo barco, nos canteiros de sombra.

Na cozinha os tachos de doce ferviam, impregnam o meu sonho, tão açúcar. A faca da morte decepou a cabeça do carneiro sobre o riacho tranquilo. Esta campa é de ninguém e sangra nas ranhuras do mármore. Quem pisou na palavra? Era virgem, porejava leite e orvalho, quem pisou – para nunca mais? O mundo caiu da figueira, da casa, do poço abandonado. Para onde quer que eu olhe é morte e a infância se me escapa por entre os dedos.

Os meus olhos desmoronam com os telhados, as teias de aranha, os morcegos e as raposas. Os meus irmãos voltaram e fazem um barulho enorme com o seu silêncio de gente grande. A estrada se esfarelou no horizonte com as nuvens e as fogueiras do anoitecer. As formigas levaram as folhas das roseiras para nunca mais. Éramos selvagens e inocentes como bichos tristes no escuro.

Eu quero o verde, o verde, o verde subindo com toda força para o alto dos galhos da figueira. Eu quero o sol. Eu quero o azul do céu. Eu quero subir a árvore do tempo, na montanha em chamas da infância eterna.

As escadarias apodreceram, a minha árvore é sempre verde. Acendo a fogueira na casa desmoronada com as pedras de fogo dos meus olhos. Os olhos do meu pai estão nos meus olhos, os meus olhos estão nos olhos do meu filho. Os olhos do bezerro Bito ainda mugem no pasto. O fogo queima a madeira, que estrala, rubra, no eterno.

 

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