sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O dinossauro




O dinossauro

 

Quando Gabriel García Márquez, com 17 anos, leu “A metamorfose”, de Kafka, descobriu que seria escritor. Quando leu a primeira frase: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, em sua cama, metamorfoseado num inseto monstruoso”, disse para si mesmo: “Eu não sabia que era possível fazer isto. Mas se é assim, escrever me interessa.” Diz que Kafka contava as coisas da mesma maneira que a sua avó: as coisas fantásticas com a maior naturalidade. Todos sabemos que não é tão simples assim. É preciso, antes, ser um narrador fantástico como Kafka, García Márquez ou a avó dele. Não basta contar coisas fantásticas.

Esse é um dos mais incríveis inícios de romance. Gosto de examinar inícios famosos de romance (ou contos, ou poemas). O que começa bem, vai bem. O que começa mal, só pode ir mal. Um dos inícios de romance mais badalados, o de “Ana Karênina”, de Tolstói, para mim é um dos piores. Quando li: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, pensei: “Eu que não vou ler uma baboseira dessas.” Não podia ser mais babaca. E olhe que eu já tinha lido o seu monumental “Guerra e paz”, e ficado de queixo caído, e concluído que tudo o que esse escritor escreve só pode ser de primeira. Mas “Ana Karênina” começa com uma frase melosa de autoajuda. Não podia ser pior. Ainda adolescente li “Lições de abismo”, de Gustavo Corção. Naqueles tempos Corção era um panaca que defendia a ditadura, mas eu não sabia. Era um grande romance, pelo tamanho (li uma edição de luxo, capa dura, ilustrada) e pelo tom, pela nobreza de linguagem, de raciocínio. E era uma paráfrase, um longo comentário do conto de Tolstói, “A morte de Ivan Ilitch”. Corri ler “A morte de Ivan Ilitch”. Deixou atrás o pobre do Corção. Um modelo de conto, de conto longo, sim, mas que bem acabado, em síntese, em profundidade. Demorei décadas para ler “Ana Karênina”, afinal, um grande romance.

Falei do melhor e do pior início de uma obra. Tenho que falar também do menos famoso, mas mais incrível, mais fantástico, mais bem bolado. Nem se falava em literatura fantástica quando foi publicado, nem quando eu o li. Estou falando da dedicatória de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Precisava mais? Depois disso você só pode esperar uma obra acima de quaisquer parâmetros. Estava inaugurado o Realismo brasileiro, estava ultrapassado qualquer tipo de realismo, que não fosse um surrealismo ou um realismo fantástico.

Tudo isso é introdução ao comentário de outra esquecida primeira frase de uma obra. Esquecida porque não é uma primeira frase, mas já a obra. É o mais famoso microconto do mundo, “O dinossauro”, de Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” Há décadas elogiam que elogiam essa obra completa em si, quase como um ovo, e nunca ouvi ninguém perguntar: O que aconteceu antes? O que vai acontecer depois? Como se já estivesse dito tudo aí, e está, mas eu não vou deixar de meter o bedelho, eu não sou pedreiro nem cozinheiro, mas não vou deixar de meter a colher nesse angu: Onde o dinossauro estava antes? Onde está todo mundo? E o Jair (por falta de nome vou chamá-lo por esse nome bíblico, antigo como a Torre de Babel, quando tudo podia acontecer, até um dinossauro, não sei por que nunca falaram nisso) dormiu duas, sete, dez horas, uma eternidade.

Jair teve um dia exaustivo (é preciso contar a sua história) caçando com pedras e paus o que comer. À noite deu conta de suas três mulheres (que não eram as do Sabonete Araxá de Manuel Bandeira, mas muito mais reais, de carne, osso e pescoço, mais carne do que osso e pescoço, as mulheres na época eram bem fornidas). Comeu, bebeu, dançou, pôs e tirou, e enfim, exausto, dormiu. A cama estava mais dura do que o normal, com mais paus e pedras, nem se lembrou onde deixou o dinossauro, se lhe tinha dado água, se ele tinha comido, se não estava lá no vale dos dinossauros, onde é o lugar dele, se não tinha fugido depois de tantas lambadas que lhe dera nas costas. Talvez o dinossauro ainda estivesse correndo atrás dele para comê-lo com fome e com raiva. Sim, ele deveria estar morrendo de medo do dinossauro, que não é carnívoro para comê-lo, mas poderia lhe dar umas belas pisadas e umas baitas rabadas.

Jair saiu da caverna (de onde nunca deveria ter saído, até hoje), não procurou as suas mulheres, nem seus irmãos e primos brutamontes, mas o seu querido dinossauro. Descobriu maravilhado que ainda estava lá. Pastando o capim mais doce deste mundo, pela cara de satisfação que fazia, olhando para o céu com os olhos mais doces deste mundo, com a maior cara de pau daquele mundo. Jair o abraçou com carinho desmedido, é preciso um carinho desmedido para abraçar um dinossauro. Jair era um brutamontes, mas sabia ter esse carinho digno de um dinossauro. Para sua surpresa o dinossauro deu-lhe uma tal rabada que ele veio aos trambolhões, de planeta em planeta, de milênio em milênio, de século em século, assustado e assustadoramente, até os nossos dias. Se o encontrarem em qualquer esquina, não lhe perguntem do dinossauro, ou eu não respondo por mim, muito menos por ele. 

2 comentários:

Roger Max disse...

Da natureza dos contos, ( dos quais tb sou muito fã, acredito até que acentuou o gosto pela leitura ) pra girar a cabeça pra todos os cantos...

José Carlos Brandão disse...

Obrigado.