A LOCOMOTIVA MALUCA
(O processo criativo de um poeta)
“Olha a Locomotiva Maluca!”, eu disse, rindo do nome da locomotiva em
frente da prefeitura de Blumenau. “É Macuca”, disse a minha mulher. “Cuidado
com a dislexia!” Eu estava rindo do nome gozado, ri sem graça agora. Até que o
nome Macuca tem a sua graça: refere-se à semelhança do apito da locomotiva com
o canto do pássaro chamado macuco, e o barulho das ferragens com o barulho das
asas. Mas eu, como acontece de hábito, tinha que ler errado. E já estava
imaginando a locomotiva louquinha da silva dando cambalhotas nos morros como um
cabrito, berrando, escoiceando, babando. Eu estava inventado, involuntariamente,
as maluquices da locomotiva. A máquina de fazer poesia estava funcionando a
toda na minha cabeça. A louquinha (a locomotiva, não a minha cabeça, que afinal
nesse momento como em muitos estava apenas tendo o dom da poesia), a louquinha
da locomotiva virava os olhos, gargalhava, cantava assoviando e assoviava
cantando.
O grande linguista Roman Jakobson aventou a hipótese de que a dislexia
contribuía para a criação poética. O que pode parecer uma estupidez para um
leigo, pode ser uma grande verdade. Eu me refiro ao leigo em matéria de poesia
e em matéria de linguística. Mesmo um poeta é raro ter a acuidade da análise
técnica dos processos linguísticos, como é raro um linguista ter a
sensibilidade da poesia como, afinal, Roman Jakobson tinha. O meu processo
criativo muitas vezes, posso garantir, é uma comprovação dessa tese. Se é que
eu tenho esse distúrbio de reconhecimento dos fonemas, especialmente das letras
em si, isso mesmo, enquanto escritas, o que me atrasou o desenvolvimento da
aprendizagem e ainda vez ou outra, agora que já estou bem alfabetizado, me
provoca surtos de poesia.
Como no caso da locomotiva, por um desvio de interpretação da escrita,
solto a imaginação (“a louca da casa”, na expressão de Victor Hugo) e a
criatividade. Por um nada, sem nem perceber, entro em estado de poesia. O
processo de criação de um poema tem muito ou mesmo tem tudo a ver com o
trabalho com as palavras, e mesmo com o som das palavras, com a musicalidade.
Mas antes desse processo em si, ou concomitante a ele, vem a criação de imagens,
vem essa fantasia da poesia, esse distúrbio e maravilhamento dos sentidos.
Talvez o que Rimbaud chamou de “desregramento dos sentidos”. Muito mais do que
a sugestão imagética que o encontro ou o desencontro das palavras cria. Assim,
o que era a princípio um defeito, que me atrapalhava, me impedia o
desenvolvimento natural da aprendizagem, se tornou um grande colaborador para a
minha criatividade. Involuntariamente, vezes por dia, ainda hoje, estou lendo
errado – e tenho vontade de pôr esse “errado” entre aspas, porque pode ser
apenas a minha maneira de ler, de interpretar o sentido das palavras, e brincar
com elas, criar com elas.
Quem disse que Macuca é um apelido mais sugestivo para a locomotiva do
que Maluca? Para eu entender por que Macuca precisei ler a explicação, de que
assoviava como o pássaro chamado macuco e fazia um barulho com as suas
ferragens que lembrava o barulho das asas do pássaro. Para eu entender por que
Maluca não precisei de nenhuma explicação, foi só pensar que eu tinha lido esse
nome e estava solta a louca da casa, e a locomotiva dava cabriolas pelos
morros, guinchava, empinava, resfolegava, cantava, com toda a alegria de viver
de que só uma louca é capaz. Quer explicação mais simples do processo poético?
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