quarta-feira, 29 de junho de 2011

Victorio Micheletti, um artista anônimo



       Admirável a disposição de Pipol para divulgar a arte e, agora, este artista anônimo, Victorio Micheletti, tão anônimo que sua própria sobrinha não sabia dessa sua atividade “secreta”. Acontece que a arte é um fenômeno cultural: não é por sua qualidade, mas pela influência ou aceitação num contexto social que o artista se torna conhecido.
      
Pipol começa por nos mostrar Victorio dando uma lição de como fotografar. Afirma categórico esta verdade basilar: fotografia é luz. Lembra-nos o princípio do fotocentrismo, de como as plantas procuram a luz como se fosse toda a fonte da vida, para em seguida mostrar-nos que a contraluz tem mais profundidade que a luz chapada. Este seria o princípio da fotografia.
      
Depois vemos Victorio visitando a exposição de Henri Cartier-Bresson e apreciando com a ingenuidade e o encanto de uma criança a arte do grande mestre da fotografia, desconhecido para ele. Encantou-se com a arte de Cartier-Bresson, com ingenuidade, e com ingenuidade criticou-o como a um igual.





      
Bonito ver Victorio falar do “erro” de Cartier-Bresson num enquadramento, numa sombra fora de lugar. Pergunta-se o que o autor quereria dizer com isto ou aquilo. Um menino de bicicleta e seu reflexo no espelho d’água, uma tomada genial – mas havia um outro menino cortado, que Victorio diz que faria par com o primeiro, como se condenando essa falha do mestre (que ele não sabia ser um mestre). Em outra foto, deixaria mais espaço à frente. Em outra... Em muitas, a admiração sincera de quem admira por convicção e não por um julgamento preconcebido.
      
Lembro-me, isso faz uns quarenta anos, era o auge do formalismo/estruturalismo, que ditava as regras da arte... Ouvi comentar de artistas portugueses (os portugueses são inteligentíssimos) que “não sabem, mas fazem”. É o caso de Victorio: não encaixa a sua arte num esquema preconcebido. Como se estivesse criando sem saber, ignorante das diretrizes da criação. Já me disseram que eu falo mal dos professores – mas eu sou um professor! – quando o meu problema é a arte presa a trilhos de ferro ou aço, não se podendo criar de outra maneira para ser aceito. O que eu defendo é a arte dos anônimos – que poderiam ser grandes mestres! – como Victorio Micheletti.
      
As últimas imagens do filme levam-nos a pensar em um mestre da fotografia. É a limpidez, a luz e as sombras realçando-a, o enquadramento, a profundidade. Por que Victorio Micheletti era um artista anônimo? Pelo motivo que eu levantei de início: faltou a necessidade cultural de sua fotografia, que ela representasse seu tempo, que ela projetasse seu tempo para o futuro. Faltou um élan social que o projetasse no seu tempo tornando a sua obra necessária.





      
Nem quero advogar um maior reconhecimento para a obra que Victorio Micheletti nos deixou de herança, ao partir agora (7-3-11) deste mundo. O reconhecimento é necessário em vida. As suas fotos têm um peso específico que era preciso ter sido sentido. O mundo fica maior com a obra de um artista. Victorio, o homem da luz, poderia ter-nos iluminado mais.
      
Por fim um voto de louvor a Pipol, por seu trabalho de divulgação da arte que nem todos veem. Pipol começou o seu trabalho com a câmera aqui em Bauru, lá pela década de 80, filmando as andanças de um monstro de metal pelo centro da cidade ou a sua indefectível lambreta capenga atrapalhando o pouco trânsito da época. Era a arte gratuita, por ela mesma, como deve ser. Depois foi para São Paulo, profissionalizou-se e realiza um trabalho limpo com as imagens, tirando do limbo gente e ideias que são necessárias e nem sempre chegam a todos.



  

  É preciso ver e rever: www.cronopios.com.br/voltar17 
 

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3 comentários:

Luiza Maciel Nogueira disse...

Arte pura Brandão!

bjs

Fernando Campanella disse...

Bela homenagem a um mestre, Brandão. Concordo com os conceitos de fotografia que ele expressa, realmente a luz chapada não permite texturas, detalhes. Só não concordo quando pergunta o que o fotógrafo (Bresson) quis dizer com alguma foto. Esse tipo de pergunta, em minha talvez ingênua opinião, acaba com o trabalho de um fotógrafo, pois, ora, o que o fotógrafo quis dizer é o que está na imagem, por si, gostemos ou não.

Forte abraço, meu amigo.

Marcantonio disse...

Belíssimo. Essa questão do anonimato fornece elementos para uma grande discussão. Incluindo a relação entre arte e comunicação. Lembro de ter lido uma frase em que Bergman admitia que poderia trabalhar perfeitamente como um artista anônimo da Idade Média pois amava antes de tudo o processo de criação. Não deixa de ter algo aí de verdadeiro sobre a motivação para criar.
Achei bastante elucidativa a cena em que Victório menciona emocionado a jogadora de vôlei que vira no dia anterior, por emblemática que é de um amor pela beleza como motivação.
Queria fazer um reparo ao comentário do Fernando: na verdade, Victório também censura esse "querer dizer alguma coisa" com a fotografia, e chega a dizer que o espectador não deve ter de adivinhar nada, essa expressão ele utilizou para explicar ironicamente um elemento na foto que ele julga desnecessário ou incompreensível. Particularmente, creio que tudo quer dizer algo, e não fosse assim, a própria questão do anonimato não teria relevância.
Uma grande figura, ótimo filme,e uma bela postagem.

Abraço.