quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Diálogo com Domenico de Biasi


 

 

DIÁLOGO COM DOMENICO DI BIASI

        

Escrevi uma crônica para o jornal “O Democrático”, de Dois Córregos, SP, que diriam ser uma paráfrase de Domenico de Biasi e seu “Ócio criativo”, mas foi publicada em1973, muito antes de ele ter lançado a sua célebre teoria:

 

Dois Córregos: Tédio e Ócio

 

Louvavam os antigos romanos as horas de ócio. Horas em que o homem se encontra consigo mesmo, contempla uma rosa, um pássaro, um poente, o sorriso de uma criança ou os cabelos brancos de um velho, e sente a beleza da vida. Não o ócio como o entendemos hoje: preguiça, gastar o tempo inutilmente; e sim o ócio criativo como era entendido na origem da palavra: folga do trabalho, repouso, tempo livre que pode ser empregado para a leitura, a meditação, a pesquisa filosófica ou científica; ou a simples liberdade de espírito no contato íntimo com a natureza.

Nossos amigos que moram em São Paulo, pelo contrário, louvam o dinamismo do paulistano, procurando construir algo, numa correria desenfreada, quase 24 horas por dia, sem tempo para depressões, revoltas, insatisfações contínuas, para a “fossa” de Dois Córregos. Acontece que transformamos ócio em tédio, nos aborrecemos, enfastiamos, queremos diversões, prazeres, que nossa cidade não nos pode oferecer. Acontece que desconhecemos por completo os prazeres do espírito. Termos muitas horas de inatividade, que gastamos ficando de fato inativos; sombra e água fresca e papo para o ar são a mesma coisa. Quando poderíamos construir não materialmente como o paulistano e sim espiritualmente: construção de um alicerce interior de liberdade, de paz, da tranquilidade de quem se conhece, conhece os limites entre suas aspirações e o que pode realmente conseguir.

Estive relendo Epicuro, que pode ter uma filosofia muito falha, sem base científica, e que pode ensinar-nos ao mesmo tempo, e muito, como vivermos melhor. Despreze-se muito de sua física, de sua canônica, sei lá; louve-se e siga-se o que nos diz sobre a amizade, por exemplo, do amor da sabedoria, do conhecimento e independência interior, essa arte da felicidade. Foi acusado de sensualidade, de total devassidão? Leiam-no: “Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade como creem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma”; o sábio “prefere a sabedoria desafortunada à insensatez com fortuna, ainda que pense que o melhor de tudo é que nas ações o juízo sábio seja acompanhado da fortuna próspera”; mantém-se “nos limites impostos pela natureza”, pois “o essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima, e desta nós somos os donos”. E isso podemos conseguir em Dois Córregos, cidade sem atrativos, sim, sem nenhum atrativo que desvie nossa atenção se quisermos conduzi-la para o lugar certo, para que possamos encontrar-nos, deixando que as águas dos dois córregos levem para longe os detritos da “fossa” em que dizemos viver.

José Brandão

 

 

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