quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Nocaute! O microconto de Maria do Carmo Corrêa

 

 

Nocaute

 

Julio Cortázar diz que, se o romance ganha o leitor por pontos, o conto deve ganhá-lo por nocaute. E o microconto? Deveria levar a nocaute no primeiro round.  Mas uma frase, poucas palavras, uns 300 caracteres, como levar o leitor a nocaute com tão pouco?

Estou com o livro de microcontos da Maria do Carmo Almeida Corrêa nas mãos (Pouco importa – Microcontos, Editora Spessoto, Bauru, SP, 2021) e a primeira ideia que me veio foi essa, antes mesmo de ler. Maldade minha, que sou leitor e autor de microcontos, e sei que um microconto começa por ser despretensioso. Como um haicai não pretende ser um poema, um microconto não pretende ser um conto. Maria do Carmo prima pela despretensão. E como quem não quer nada, dá um soco na boca do estômago da alma do leitor desavisado, que cai em nocaute.

O primeiro conto é uma paráfrase de um delicioso poema de Carlos Drummond de Andrade (que não escrevia poemas “deliciosos”), “Lembrança do mundo antigo”. Quem não está familiarizado com a poesia de Drummond nem percebe. Deveria perceber. Maria do Carmo está dando a chave de seus microcontos. Ou uma dupla chave: a paráfrase (arma de muitos contistas) e a memória (alma da poesia).

O microconto mais célebre que existe é “O dinossauro”, de Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” É paráfrase (não importa de quê) e poesia pura. Outro microconto começa a ser citado, atribuído a Hemingway.  Sou leitor de Hemingway, duvido que seja dele. Não é a sua linguagem. Não está em nenhum livro dele. “Vendem-se: sapatinhos de bebê, nunca usados.” Muito bom, mas também muito panaca para Hemingway. Tá, pode me provar que é verdade, mas a minha sensibilidade literária não acredita.

Excelente que Maria do Carmo não embarcou nessa, de forçar o nascimento de um história (muitas parecem ser tiradas a fórceps) em apenas uma frase. Os microcontos de Augusto Monterroso têm meia página, uma página e até mais, geralmente envoltos da vestimenta da fábula – que precisa um pouco mais de desenvolvimento. Como Maria do Carmo diz, em “Poema”, um de seus menores contos: é preciso chegar ao deslumbramento – sinônimo muitas vezes disso que falei acima: o nocaute. O leitor é nocauteado com o deslumbramento da poesia.

É o que diz num de seus mais sugestivos microcontos, “Plano”: “A morte pode conferir credibilidade à fábula”. Não é só Monterroso que entra no mundo da fábula para inventar suas histórias tão sugestivas. Sim, Maria do Carmo leva-nos a nocaute. No primeiro round, no início do primeiro round. Com luvas de pelica. Bem feminina. 

Foi um prazer a leitura de “Pouco importa”, microcontos que importam muito. Nestes tempos pesados, saímos de alma leve de suas histórias com tanta vida.

Vou deixar-lhes aqui dois de seus microcontos (a vantagem dos microcontos também é a facilidade para citá-los). Aproveitem, enquanto não tiverem o prazer de desfrutar da leitura de seu livro.

 

*

 

PLANO

 

– Foi só um jogo, senhor.

– Quer dizer que não havia um plano?

– Na verdade, não.

– Nenhuma conspiração?

– Pois é...

– E como explica todos esses seguidores?

– Sei lá...

– Pois vai pagar essa brincadeira com a vida?

– Pense bem, senhor Pilatos. A morte pode conferir credibilidade à fábula.

 

 

OVO

 

Não existe nada mais frágil que a felicidade, disse a palestrante. Segurou um ovo entre os dedos e aproximou-o da quina da mesa. Suspirei: que imagem fascinante de fragilidade!

Mas o ovo, quebrado, ainda existia. O que seria frágil, o ovo ou sua casca?