sexta-feira, 5 de novembro de 2021

A Vênus de Willendorf


 

A Vênus de Willendorf

 

Há pouco menos de um mês fiz um poema chamado “A Vênus de Willendorf”. Por quê? Todo poema deve ter sua história. Por que Vênus? Por que de Willendorf? O que me levou a escrevê-lo? Por que não a deusa Vênus, deusa da mitologia dos romanos, do amor e da beleza? O poema fala em tempo? Mania minha de meter o tempo em tudo que escrevo? Ou o tempo tem algo de especial com Vênus ou com essa Vênus em especial? Por que termino falando da palavra? E com algo de mistério, de não-conclusivo?

Há quase cinquenta anos comprei uma enciclopédia em cinco volumes, “Arte nos Séculos”. Já no texto de abertura, fala da Vênus de Willendorf. É a figura de uma mulher, de uns vinte e cinco mil anos de idade (na enciclopédia falava-se no dobro). Olha aí a questão do tempo. Somos filhos do tempo, subjugados pelo tempo, destruídos pelo tempo. Aliás, somos o resíduo do tempo, ou o que o tempo ainda não devorou. Por que Vênus? A deusa Vênus é o símbolo da beleza, o ideal de mulher. De Willendorf porque foi encontrada num lugar desse nome, na Áustria. Há milhares de anos a arte estava nascendo.

Eu estava começando a escrever poesia, mais a sério, estava encontrando a minha forma. A arte é a representação da beleza. Esculpida numa pedra, como a Vênus de Willendorf, ou submissa à palavra, que nunca é suficiente para representar a beleza. A palavra é frágil para toda a carga de vida que o homem tem, para o seu ideal de beleza, para o efêmero de que se reveste a sua visão do mundo. A palavra antes de tudo é imagem, são as figuras que o homem primitivo desenha com as mãos, na ânsia de se comunicar e de criar. Vai desenhar depois os sons, que devem estar relacionados a imagens para significar e revelar. A palavra em um poema deve se tornar imagem para ser arte, para se tornar revelação do ser.

A Vênus de Willendorf tem pouco mais de onze centímetros de altura (11,1 cm exatamente). Não tem um apoio para ser posta numa mesa ou numa parede, é provável que fosse carregada nas mãos, como um amuleto. Tem um ventre proeminente, os seios e a bacia muito grandes, e a vulva à vista. Deduz-se que estaria ligada à fertilidade, ou a um ideal de beleza da mulher na época, de formas avantajadas. Depois dessa Vênus foram encontradas outras duzentas, mas nenhuma figura masculina, o que leva a crer que era uma sociedade matriarcal. É o elogio da mulher, a submissão à mulher, a fonte do prazer e a fonte da vida. A arte não é uma cópia realista, mas uma representação do ideal de beleza feminino. 

Não é bela? Não é agradável aos sentidos? Certamente não é bela segundo os nossos padrões de beleza. Não é agradável à nossa sensibilidade, apenas. Devemos senti-la como o homem ou a mulher daquela época sentiam. A Vênus de Willendorf não é uma criação muito primitiva apenas, mas uma comprovação de tudo que o homem possa conceber sobre a arte. Está guardada no Museu de História Natural de Viena, salva da efemeridade da arte, simbolizando o início da história da arte do homem. Por mais simples que você possa julgá-la, por mais despretensiosa, sempre nos leva a sonhar mais, a querermos nos compreender mais e ao universo em que vivemos.

Não é à toa que digo: “Eu sou essa Vênus/ eu sou essa mulher”. É preciso estar consciente de que “Sou filho da palavra” e “a imagem é mãe do ser”. Se você pensou em Heidegger, para quem a poesia é a “morada do ser”, é disso mesmo que eu estou falando. Viemos de uma palavra perdida no tempo, encontrada numa peça de arte, gritando-nos que somos filhos do “poema do tempo”.

 

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A VÊNUS DE WILLENDORF

 

 

Eu sou essa Vênus, eu sou essa mulher

ela me deu à luz por cima do tempo

eu vim dessa deusa há milhares de anos

a sua voz é a minha voz

sou filho da palavra viajante do tempo

sou filho da imagem

a palavra nasce da imagem

a imagem é a mãe do ser

sou filho do poema do tempo

 

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