O ÚLTIMO POETA
NACIONAL
Morreu Ferreira Gullar, o último poeta nacional. A
poesia brasileira ficou bem mais pobre. Ninguém da estatura de Drummond ou
Bandeira, ninguém da estatura de Ferreira Gullar. Foram-se Cecília Meireles,
Murilo Mendes, Jorge de Lima, Raul Bopp, João Cabral de Melo Neto, Manuel de
Barros. Temos ainda poetas excelentes, mas desconhecidos do público. Ninguém
que o leitor infla o peito para dizer o seu nome, como se fosse um nome maior
do que o do comum dos mortais.
Escrevi há dez anos um comentário, que quero
recordar com os meus leitores: "O Poema Sujo, de Ferreira Gullar está
comemorando os seus trinta anos de publicação. Eu ouvi o poeta ler algumas
passagens, em agosto deste ano, na 4ª Flip.
O poema permanecia forte, fervendo de calor, de
sangue quente correndo-lhe nas veias. O público, de boca aberta. Olhos baixos,
reverentes.
O tempo se escoou e o Poema Sujo continua
recendendo o limo virginal de sua sujeira: recende poesia pura, conspurcada por
aqueles tempos sujos - a ditadura militar, o poeta estava no exílio,
despedia-se temendo o futuro, que era a morte. Mas, algum tempo depois, li uma
resenha dizendo que o poema envelhecera.
Eu ouvira passagens fortes, na voz forte do poeta -
que sabe dizer muito bem os seus poemas. Encontrei novamente essas passagens
fortes, pujantes de vida. Um poema deve ter isso: vida.
Não pode ser frio, ser letra morta ao nascer, ou
com o tempo, comprovando então que não era tão bom assim. O poema pulsa ainda,
com sangue quente.
O resenhista não deixava de ter razão, no entanto.
Outras passagens eram fracas. Um poema de umas setenta páginas pode muito bem
ter algumas mais fracas. É comum dizer-se da vantagem do romance sobre o conto
- que o romance pode ter imperfeições, e continuar sendo um grande romance. As
imperfeições não o invalidam.
O conto deve ser como o poema: um lapso, um mínimo
deslize estraga-o. Como o poema, eu disse. Mas o Poema Sujo é um texto longo
como um romance - suporta as imperfeições que o romance suporta.
Ferreira Gullar tem uma teoria interessante. O
poeta serve-se da linguagem da prosa, que, num dado momento, por um estalo
mágico, por um encantamento das palavras ao se encontrar, ou ao se
desencontrar, torna-se poesia. As palavras criam imagens, encantam-se. Perfeito.
Estranha um pouco dizer que se serve da linguagem da prosa, mas é o que
acontece com ele, Ferreira Gullar.
Escreve prosa, mas com palavras que se encantam: e
voam pássaros, e voam pedras e pães, e bananas e peras (da quitanda da sua
infância, que carrega no bolso). Houve palavras do Poema Sujo que não se
encantaram. Continuaram sendo recordações da infância, ou grito de revolta pela
perda do país da infância, mas não se tornaram poesia. Dou a mão à palmatória:
algumas passagens do Poema Sujo envelheceram.
Ou, lidas no calor da hora, não deixaram ver que
eram apenas banais. Relatos de cenas de sexo, vulgares, que imaginação nenhuma
eleva à categoria de poesia. Gullar tem muitas cenas em seus poemas que não se
elevam da sarjeta da vulgaridade - tudo em nome do protesto social, é a sua dor
que sangra nas palavras.
Quando esse sangue vivifica as palavras, jorra a
poesia, grande. Ninguém é perfeito, nem Gullar. Todos os poetas cometem os seus
deslizes. Todos os poetas têm o direito de errar, fazer os melhores poemas do
mundo e os piores (como diz Borges), até sem poesia. Às vezes a maior
preocupação é a mensagem: é quando a mágica não acontece. Gullar é um mágico
maior.
O Poema Sujo, com as devidas exceções, que
confirmam a regra, está repleto de poesia maior, mágica maior. Só um exemplo:
"É impossível dizer/ em quantas velocidades diferentes/ se move uma
cidade/ a cada instante/ (sem falar dos mortos/ que voam para trás)" - e
me calo, reverente."
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