terça-feira, 28 de julho de 2009
Poente
Fui milagrado de garça no poente.
O sol deslizava na água calma do rio.
Eu voava, bicava uma nuvem que não era, me espreguiçava,
azeitava o bico, contemplava.
A rãzinha conversava com o joão-grande, ele nem ligava, cismava.
Grandes cismas as nossas. Eu com um pé dentro da água
que passava, passava sem sair do lugar.
Água é coisa que nunca sai do lugar,
diferente do sol, que cai, se machuca para ser outro.
Eu cismava e voava com uma nuvem no bico, coloria, contemplava.
Ser Deus é essa graça – essa garça levada.
Paira sobre a água, leva a água: desenha o poente
como quem põe um ovo fragílimo abrindo um arco-íris, garça-íris.
Estou dentro da água, milagrado de garça.
O poente bóia na fogueira acesa com o sangue do sol degolado.
domingo, 26 de julho de 2009
Beira-rio
A formiga se ajoelha para o tamanduá.
Sobe um gemido de princípio de mundo,
do monjolo monótono moendo a estrada.
Cupim-menino estuda arquitetura.
A margem do rio linda com a aurora.
Chove no meu olho a cor das coisas sem nome.
A garça se equilibra no brilho da água.
O rio transborda de pétalas e penas.
Mulheres e porcas estão parindo.
O azul relincha no dia das potrancas.
Uma vaca morta vem navegando
com o seu urubu-pirata em cima.
Emas no capinzal tinem as esporas,
num vôo rasante contra os tições do sol.
quarta-feira, 22 de julho de 2009
O jardim do fim do mundo
Os pássaros voaram com a explosão do sol,
As árvores dançaram com as raízes para o ar,
Os cavalos galoparam na praia agônica.
A minha mesa se abre como uma flor,
O meu espelho se parte como as estrelas no caos.
De repente me descubro no jardim do fim do mundo.
Nada mudou, mas o mundo não há mais.
Depois do horizonte não há um outro horizonte.
Estou à beira do poço,
Estou no deserto escuro de areia,
Estou só na montanha seca. Sou uma pedra.
Um beduíno chega morto de sede, atira a pedra
Dentro do poço e fica esperando o barulho na água,
Fica esperando. Eu nunca chego ao fundo.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
As águas do poema
A HERÁCLITO
As águas do rio
estão dentro dos meus olhos.
Nunca acabam de passar.
DIA DE GRAÇA
Era domingo e eu andava
sobre as águas rumo ao sol.
REPOUSO
O barco repousa
de borco na areia
sob a luz da lua.
O RELÓGIO
O poeta fotografa,
na falsa imobilidade do relógio,
o tempo imóvel.
O GIRASSOL
O poema é um girassol –
claridade para todos os lados.
AS ESTRELAS
Olhei o abismo da noite
e as estrelas queimaram os meus olhos.
SACO DE PANDORA
Enfiei a mão no saco de palavras
e tirei as palavras água, pedra,
árvore, azul e um pássaro saiu voando.
O RIO
O poema é um rio:
suas águas defluem
e lavam as dores do mundo.
OS PULMÕES
O poeta tem o céu nos pulmões,
a árvore com os pássaros de Deus.
O FIM DO MUNDO
Chovia a cântaros
quando o mundo acabou.
E sobrevivemos.
QUIETUDE
Como almas quietas,
as pedras no fundo d’água
por toda a eternidade.
IDENTIDADE
Não sou quem sou,
mas quem me invento.
______________________________
sexta-feira, 17 de julho de 2009
Testemunho
A Pedro Luso de Carvalho
Escrevo sobre o presente.
Tenho um saco de moedas na cintura
E os ombros curvos com a dor do meu tempo.
Escrevo para um tempo que nem papel tem mais?
Para um tempo que não existe, senão no mundo virtual?
Escrevo para o meu tempo, real como o sangue
Que escorre para a sarjeta, que as bocas-de-lobo engolem.
Qual é a minha febre? De onde vem?
Qual é o meu pavor? De que tenho medo?
Qual é a minha dor? Por que estou sofrendo?
A dor do mundo é a minha dor, e sangra
No momento em que escrevo, no presente.
Sou o homem emparedado no meu tempo,
Sou uma tocha a arder na noite, como o meu nome.
________________________
Este poema é meu comentário ao poema Pedra de Toque, de Egito Gonçalves, que Pedro Luso de Carvalho publicou no seu blog (para visitá-lo, clique no título acima - Testemunho).
Escrevo sobre o presente.
Tenho um saco de moedas na cintura
E os ombros curvos com a dor do meu tempo.
Escrevo para um tempo que nem papel tem mais?
Para um tempo que não existe, senão no mundo virtual?
Escrevo para o meu tempo, real como o sangue
Que escorre para a sarjeta, que as bocas-de-lobo engolem.
Qual é a minha febre? De onde vem?
Qual é o meu pavor? De que tenho medo?
Qual é a minha dor? Por que estou sofrendo?
A dor do mundo é a minha dor, e sangra
No momento em que escrevo, no presente.
Sou o homem emparedado no meu tempo,
Sou uma tocha a arder na noite, como o meu nome.
________________________
Este poema é meu comentário ao poema Pedra de Toque, de Egito Gonçalves, que Pedro Luso de Carvalho publicou no seu blog (para visitá-lo, clique no título acima - Testemunho).
quarta-feira, 15 de julho de 2009
Catarse
CATARSE
Um pássaro voa
nos ares lavados
da tarde que coa
o seu canto exato.
Canto que penetra
a alma desta tarde
como se uma seta
contra a sua carne.
Carne que descansa
à espera do alarme
da memória fálica.
Fálica tal lâmina
na tarde em catarse
de verde ou luz, cálida.
ÊXTASE
Devoram as grinaldas da paisagem
Os venenos do tempo derrocado.
Como num sortilégio de fecundo
Mistério que se exala e nos consome,
Ferem as faces em nudez agônica
E nos comovem dentes de serpentes.
Num mergulho de trágica aventura,
Na suculenta polpa escura de
Um ofego de mar contra os espaços,
Um vórtice de línguas inquietantes
Sorve o sangue da aurora degolada
Pelas espadas rubras dos olhares.
Contempla o canto limo de agonia
A glória do êxtase e o anseio grave.
______________________
Se o poema não provoca alguma espécie de catarse,
não cumpre a sua função.
sábado, 11 de julho de 2009
O homem cego de si
_________________________________
Curta-metragem do GRUPO BONEQUINHO, com roteiro e câmera de Amanda, namorada de meu filho, Aran, responsável pela edição e trilha sonora (banda bonequinho), com o ator Hesso Maciel, e de quebra um poeminha meu, do livro Exílio, 1983. Inverno, 2009.
quinta-feira, 9 de julho de 2009
Dois sonetilhos do falso
RETRATO
Em presságio e astúcia
Teço a minha angústia,
Rebeladas tochas
Acendo nas rochas
Da minha cratera
De sombras e febre.
Ó festa de sustos,
Luzes, quedas bruscas,
Ó tempos confusos,
Ó vácuos, ó fusos,
Imagem secreta
Em que se enovela
Esta minha musa,
Verdade profusa.
OS OFÍDIOS
Na concha das noites,
Sendas do olvido
E breus do ofício,
A cruz e os açoites,
Perdemos o lenho
Do sonho que somos,
Sem vôo no espelho
Que o recomponha,
Mas prosseguimos,
Solertes ofídios,
No pó que fala.
Perenes, eternos,
Nós voltaremos
À carne da alma.
________________________
Drummond publicou um "Sonetilho do falso Fernando Pessoa".
Eu venho com dois, mas apenas sonetilhos do falso - e a lembrança respeitosa de Pessoa e Drummond.
sexta-feira, 3 de julho de 2009
Lenda da Igreja Matriz de Paraty
A SERPENTE E MENINO
A serpente dorme sossegada
Sob o chão da velha igreja.
De seu sono de fábula
Não acorde a serpente prateada.
Essa serpente um dia foi um menino
Abandonado pela mãe.
O menino mamou o leite da Virgem,
Transformou-se na serpente adormecida
Deitada no lençol de terra fofa
Da igreja maternal.
Não acorde a serpente furiosa
No seu leito de penas de anjos brancos.
Olha a serpente! Com o rabo e os dentes
Vai derrubar a igreja no mar.
___________________________
Quem conta um conto aumenta um ponto, mas eu estou apenas cantando uma lenda maravilhasamente terrível como o povo conta: um menino foi abandonado no porão da Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário, de Paray, mamou nos seios da Virgem Maria e transformou-se numa serpente. O poema tem um ano, a lenda é secular, a serpente ainda dorme sossegada. Que a Flip não faça muito barulho!
quarta-feira, 1 de julho de 2009
Prelúdio
“I reason, Earth is short –
And Anguish – absolute" - Emily Dickinson
Cai a noite de junho na sarjeta,
Cheira a fritura, bacalhau, carniça.
Eu me encolho na minha capa preta
E desafio para a mesma liça
A cruz e a rosa, o abismo das estrelas.
Corre a vida encardida como um rio
Nevoento aos meus pés, sob as janelas
De ninguém, no universo vão, vazio.
O vento chicoteia o corpo inútil,
Com os círios do nada ele me invoca:
Queima a chama o silêncio que me impus.
O tempo que me resta a mais deglute-o
Uma voraz lagarta e sua roca,
Mas a rosa floresce sobre a cruz.
Assinar:
Postagens (Atom)